Lisa Batiashvili

Elisabed Batiashvili — transliteração de ლიზა ბათიაშვილი

Tbilisi, Georgia, 6 de março de 1979

Instrumento: Giuseppe Guarneri, o “Guarneri del Gesù”, 1739

Começou a estudar violino com 4 anos com seu pai, também violinista. Sua mãe era pianista. Sua família deixou a Geórgia em 1991 e se estabeleceram na Alemanha, onde ela irá estudar na Musikhochschule de Hamburgo. Em 1995 ela vence, em Helsinque, o Concurso Sibelius de violino.

Lisa dedica-se, em sua carreira, com igual interesse à música de câmara tanto quanto solista junto a grandes orquestras. Dona de um vasto repertório, que vai de Bach aos contemporâneos, foi a responsável pela estréia de importantes obras recentes, como o Concerto para 3 violinos — com seus colegas Jaakko Kuusisto e Pekka Kuusisto — de  Olli Mustonen em 2001 e o Concerto para violino de Magnus Lindberg, de 2006, dedicado a ela. Giya Kancheli escreveu em 2008 um Concerto para violino e oboé especialmente para ela e seu marido, o oboísta François Leleux, com quem tem 2 filhos.

Seu toque apaixonado e arrebatador vem eletrizando platéias e colocando seu nome como uma das mais requisitadas solistas de nossos dias.



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(1812) BEETHOVEN Sinfonia n. 8

Compositor: Ludwig van Beethoven
Número de catálogo: Opus 93
Data da composição: de maio a outubro de 1812
Estréia: 27 de fevereiro de 1814 — Redoutensaal, Viena, regência do autor

Duração: cerca de 25 minutos
Efetivo: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpano, e as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

É imprescindível se ter em mente, quando se aprecia a Oitava — o "patinho feio" da série — que ela encerra um processo criativo, e, porquê não dizer?, uma trajetória dramática de 12 anos nos quais se apresentaram 8 Sinfonias. E que moutros 12 anos serão necessários para que de sua forja salte a Rainha das Sinfonias, a Nona. A Oitava seria, na minha opinião, um retorno às origens, como que a conclusão de um ciclo, pois a próxima obra (a Nona) já diz respeito a um outro universo. Mas tal retorno não seria meramente mais um gracejo em direção a Haydn — o mestre e professor que o inspirara e dera o molde no qual se formataram a Primeira e a Segunda Sinfonias — mas o fechamento mesmo do ciclo, como que ligando a pontas.

Sua verve é bem-humorada, mas as ironias escondidas podem passar despercebidas. O próprio Beethoven, em vida, cedeu à tentação de chamá-la de "minha pequena Sinfonia", pois se comparada à Sétima, sua contemporânea, ela não busca ocupar espaços com a mesma volúpia, nem leva o ouvinte de roldão em seus ritmos. É uma obra curiosa, ainda incompreendida. Quem se impressiona com o arrebatamento das Sinfonias precedentes pode, num primeiro momento, ressentir-se de sua falta de vigor e potência, sua delicadeza estudada e sua fleuma quase distante. 

I. Allegro vivace e con brio (Rápido, vivo e com brio) — cerca de 9 minutos
Sem muita cerimônia, de maneira festiva e enérgica, Beethoven nos apresenta o primeiro tema logo de cara, sem introdução. Não chega a ser propriamente um movimento de estética antiquada, mas há algo que borbulha um humor do Classicismo. Há lirismo, mas entrecortado por acordes tipicamente beethovenianos, mas estes nunca são estrondosos o suficiente, como se uma barreira comportamental impedisse cair em excessos. A pontuação de leveza fica por conta dos sopros enquanto as cordas se comprometem a levar a música com mais ênfase. É como se o velho Haydn ressuscitasse para imitar jocosamente seu aluno Beethoven.

II. Allegretto scherzando (Sem arrastar, com humor) — cerca de 4 minutos
Um movimento absolutamente inesperado em Beethoven, depois de tudo que ele já havia proposto. E o de menor duração em todas as Sinfonias. Agora é como se Beethoven respondesse à provocação do velho estilo, imitando-o. Evidente que se trata de um movimento genial, mas sua pontuação é tão classicista, sua graça tão elegante, que destoa fortemente, se pensarmos a que ponto a música sinfônica já havia sido levada após a Quinta Sinfonia. O frescor nos remete diretamente aos movimentos lentos de Haydn.

III. Tempo di Minuetto (Ao tempo de um Minueto) — cerca de 5 minutos
Mas não foi Beethoven que sepultou a prática de se colocar Minuetos como terceiros movimentos das Sinfonias? Sim, foi. Mas não nos deixemos enganar: é um Scherzo, embora isso nem seja mencionado no título do movimento. Mas um scherzo muito especial, na verdade um Ländler (dança típica da Áustria que dará origem à valsa). Humor e ironia para, mais uma vez, olhar o passado de forma divertida. 

IV. Allegro vivace (Rápido e vivo) — cerca de 9 minutos
Um movimento de construção sofisticada, embora possa parecer simples. Por vezes a música parece hesitar em prosseguir no caminho escolhido. Mas fica evidente que, em alguns momentos, a orquestra "ri". A atmosfera de jocosidade que dominou a obra persiste, mas é colocada em dúvida. 

Eu arriscaria dizer que na Oitava Beethoven retratou Goethe. Como a catarse de seu encontro com o grande mestre da literatura, ocorrida em Teplitz meses antes, no qual o comportamento áspero e direto do compositor chocou-se com as frivolidades e mesuras à antiga do amado poeta. Detestaram-se, sabemos. Se uma Sinfonia inteira (a Terceira) serviu de enaltecimento a Napoleão e crítica ao Antigo Regime, se outra (a Quinta) buscou o herói que Napoleão deixara de ser ao ser coroado para encontrar forças em si mesmo, se outra ainda (a Pastoral) pode dar voz à natureza, por que não podemos supor que a Oitava fala desse encontro? Arrisco aqui neste texto estar ousando uma associação imprópria, mas ouçam cada um dos quatro movimentos dessa obra tendo em mente um Beethoven pensando em Goethe com certo escárnio...

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(1813) ROSSINI Abertura "A Italiana em Argel"

L'italiana in Algeri, dramma giocoso

Compositor: Gioacchino Rossini
Número de catálogo: EC I/11
Data da composição: 1813
Estréia: 22 de maio de 1813 — Veneza, no Teatro San Benedetto, regência de Alessandro Rolla

Duração: cerca de 7 minutos
Efetivo: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, 1 trombone, tímpanos, triângulo, bumbo, pratos, e as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

É interessante notar que enquanto Beethoven vivia as agruras de sua inadequação ao discurso operístico tradicional no remanejamento de sua "Leonore" (que iria re-estrear, no ano seguinte, 1814, como "Fidelio"), o jovem Rossini de 21 anos fazia brilhar seu primeiro grande sucesso, mas já a sua décima-primeira ópera, "A Italiana em Argel", retirando um certo bolor do qual o gênero padecia, conferindo à ópera italiana um novo fôlego.

A comédia conta sobre a linda Isabella, que quer libertar seu amado Lindoro, escravo de Mustafá, líder dos berberes em Argel, capital da Argélia. A música da abertura é simples, alegre, inventiva e cheia de verve, explorando o colorido da instrumentação com genial maestria. Um fato surpreendente é o tempo utilizado por Rossini para compor não só a abertura como toda a obra em dois atos, somando cerca de 2 horas de música: fontes apontam 18 dias, outras 27, mas o fato é que o jovem compositor não gastou mais que 3 semanas.

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(1879) SMETANA Suíte "Minha Pátria"




Má vlast

Compositor: Bedřich Smetana
Data da composição: de 1872 a 1879
Estréia: 5 de novembro de 1882 em Praga, regência de Adolf Čech — a Suíte completa

Duração: cerca de 1 hora e 15 minutos
Efetivo: 2 flautas, 1 flauta-piccolo, 2 oboés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, tímpanos, bumbo, triângulo, prato, harpa, e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)
   
Smetana foi um dos primeiros compositores europeus dedicado ao patriotismo musical, seja por suas óperas históricas ou por seus Poemas Sinfônicos, quase sempre ligados à sua Bohemia natal. Em 1862, deixa um cargo importante em Gotemburgo, Suécia, para voltar a Praga motivado pelas notícias de que um Teatro Nacional seria construído para dar espaço às óperas tchecas. Em 1874, porém, viu-se definhar em saúde por causa da sífilis, e o efeito mais cruel da doença foi a perda da audição. Portanto quase a integralidade da concepção de "Minha Pátria" deu-se no interior agora silencioso da mente do compositor.
   
São seis Poemas Sinfônicos que perfazem uma Suíte que pinta em retratos a Bohemia, Praga e a identidade do povo tcheco.
 
I. Vyšehrad
Castelo Alto
Data da composição: rascunhos de 1872; 1874
Estréia: 14 de março de 1875 em Praga, regência de Ludwig Slansky
Lento — Largo maestoso — Grandioso poco largamente — Allegro vivo ma non agitato — Lento ma non troppo (Lento — Bem devagar e majestoso — Grandioso e quase vagarosamente — Rápido e vivo mas sem agitação — Lento mas não muito) — cerca de 16 minutos
É o único trecho iniciado antes da surdez se abater sobre o compositor. Smetana começa sua homenagem à terra pátria pelo símbolo máximo de poder dos antigos bohemios, Vyšehrad, local onde os primeiros reis da dinastia Premislida construíram sua fortificação (hoje parte do Castelo de Praga), e que deu origem aos assentamentos que hoje formam a capital tcheca. As harpas iniciam um prelúdio que simboliza o canto dos bardos despertando as recordações do passado glorioso de Vyšehrad. Evocam-se aqui torneios medievais, batalhas, e por fim sua decadência e queda quando o domínio de Carlos IV fez da Bohemia parte do Sacro-Império. Os temas expostos neste primeiro Poema Sinfônico darão origem a todos os demais da Suíte, numa perfeita coesão das idéias musicais.
 
II. Vltava
O Moldava
Data da composição: novembro a dezembro de 1874
Estréia: 4 de abril de 1875 em Praga, regência de Adolf Čech
Allegro comodo non agitato — L'istesso tempo ma moderato — L'istesso tempo — Tempo I — Più moto (Rápido mas confortavelmente e sem agitação — Mesmo andamento, mais moderado — Mesmo andamento — Volta ao andamento inicial — Bem movimentado) — cerca de 12 minutos
Este Poema Sinfônico traça o caminho do Rio Moldava, que corta o país e sua capital. É o trecho mais célebre da obra, muito mais executado que qualquer outra música do autor e muita gente desconhece que ele é parte de uma Suíte. Flautas e clarinetas, no início, simulam o correr dos ribeirões que ao se unirem (toque do triângulo e entrada das cordas graves) dão forma ao rio. O moldava então flui sereno por prados e matas, e sua melodia tipicamente tcheca se impõe. Caçadas nas florestas irrompem através das trompas. Os primeiros vilarejos, ouve-se ao longe as festas dos aldeões, em uma dança típica de ritmo marcado. O tema principal retorna, em tons escuros e de caráter cintilante: anoitece,, temos o brilho da lua prateada refletida nas águas calmas. O tema é re-apresentado com urgência, nos coloca no turbilhão das Corredeiras de São João (local que hoje não existe mais, pois deu lugar a uma represa), e o choque violento das águas nas rochas transporta para um breve redemoinho, e logo o rio se expande, para entrar majestoso na cidade de Praga. O reflexo do Vyšehrad nas águas faz soar o tema do movimento anterior. O rio passa pelas pontes da cidade e segue seu curso até ter suas águas (e com isso o tema da obra) dissolvidas no Rio Elba.
     
III. Šárka
Šárka
Data da composição: 1875; terminado a 20 de fevereiro de 1875
Estréia: 17 de março de 1877 em Praga, regência de Adolf Čech
Allegro con fuoco ma non agitato — Più moderato assai — Moderato ma con calore — Moderato — Molto vivo — Più vivo (Rápido com fogo mas sem agitação — Muito moderado mesmo — Moderado mas quente — Moderado — Muito vivo — Mais vivo) — cerca de 10 minutos
Obra de extrema violência — musical assim como de conteúdo —, Šárka é personagem da tradição tcheca, guerreira que quer vingar-se de todos os homens devido a uma decepção amorosa. A introdução expõe o ódio de Šárka. Ouvimos a marcha dos escudeiros de Ctirad. Um solo lânguido de clarineta reproduz o gemido de Šárka, que se fez amarrar a uma árvore para simular estar em perigo. O solo de violoncelo que se segue é a paixão imediata de Ctirad ao ver a jovem donzela em suposto perigo. Ele a liberta, e temos uma festa na qual Šárka faz com todos bebam um preparo que colocará a todos em sono profundo. Um chamado de trompas é o aviso ara que as guerreiras comandadas por Šárka venham aniquilar o grupo, e a música conclui na atmosfera do ódio cego de Šárka na terrível carnificina. Os toques de desespero da partitura, que se inserem na loucura da personagem-título, também refletem o estado de espírito de Smetana, a esta altura em deplorável condição física por conta da sífilis.
         
IV. Z českých luhů a hájů
Pelos prados e bosques da Bohemia
Data da composição: 1875; terminado a 18 de outubro de 1875
Estréia: 10 de dezembro de 1875 [?] em Praga
Molto moderato — Allegro poco vivo, ma non troppo —Allegro quasi Polka — Tempo I — Allegro — Presto (Muito moderado — Rápido um pouco vico, mas não muito —Rápido, quase uma polca — Volta ao primeiro andamento — Rápido — Correndo) — cerca de 13 minutos
O mais genérico da série, mas de certa forma, um dos mais fortemente simbólicos — ao lado do segundo, O Moldava — por retratar, como escrevera o autor, "os sentimentos que temos ao contemplar a paisagem da Bohemia". Como o faz a "Pastoral" de Beethoven, aqui tem-se um quadro da natureza. Há certa melancolia, mas também um genuíno júbilo de amor à terra pátria. Foi após escrever este quarto Poema Sinfônico que Smetana decidiu que os anteriores, mais este e os próximos dois, deveriam ser apresentados em conjunto sob o título de "Minha Pátria".
             
V. Tábor
Tábor
Data da composição: 1878; terminado a 13 de dezembro de 1878
Estréia: 4 de janeiro de 1880 em Praga
Lento — Grandioso — Molto vivace — Lento — Molto vivace —Lento maestoso — Più animato (Lento — Grandioso — Muito vivaz — Lento — Muito vivaz —Lento e majestoso — Bastante animado) — cerca de 12 minutos
Por motivos de saúde, Smetana interrompera por quase três anos o processo de composição e em 1878 volta com este "Tábor", cidade do sul da Bohemia onde no século XIV os guerreiros hussitas — reformadores boêmios que seguiam Jan Hus, e que mais tarde se juntaram aos luteranos — resistiram às forças oficiais da Igreja e dos nobres, que acabaram por aniquilá-los. É, em relação aos anteriores, um trecho mais conciso do ponto-de-vista temático, de sobriedade religiosa, cujo coral "Ktož jsú boží bojovníci" (Vós que sois os combatentes de Deus) serve de base. Smetana quis retratar com música mais fatalista e impositiva a grande força de caráter que via nesses bravos resistentes.
                 
VI. Blaník
Blaník
Data da composição: 1878/1879; terminado a 9 de março de 1879
Estréia: 4 de janeiro de 1880 em Praga, junto com o trecho anterior
Allegro moderato — Andante non troppo — Più allegro ma non molto — Tempo di marcia — Grandioso — Tempo I — Largamente maestoso — Grandioso meno — Allegro — Vivace (Rápido moderado — Calmamente mas não muito — Bem rápido mas nem tanto — Tempo de marcha — Grandioso — Volta ao andamento inicial — Vagarosamente e majestoso — Grandioso mas menos que antes — Rápido — Com vivacidade) — cerca de 14 minutos
É, na verdade, continuidade do Poema Sinfônico anterior e utiliza da mesma temática, seja musical ou de inspiração. Mas se Tábor fala dos hussitas reais, Blaník é a montanha na qual os cavaleiros de São Venceslau repousam um sono do qual despertarão para defender sua pátria quando esta estiver ameaçada. O hino dos hussitas ressurge, o tema do Castelo (primeiro trecho da Suíte) também voltará. Um episódio de caráter épico, vencedor.

Após o término desta composição e sua estréia como Suíte completa em 1882, Smetana piorou a olhos vistos. Surtos de loucura fizeram com que fosse afastado do convívio. O maior nacionalista tcheco morreu demente a 12 de maio de 1884. 
 
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(1892) TCHAIKOWSKY Suite "O Quebra-nozes"

Shhelkunchik, Balet-feerija — transliteração de Щелкунчик, Балет-феерия
(O Quebra-nozes, Balé feérico)

Compositor: Piotr Ilyich Tchaikowsky
Catálogo: Opus 71-a / TH 35 / ČW 32
Data da composição: de fevereiro de 1891 a abril de 1892
Estréias: 12 de março de 1892 — Sociedade Musical de São Petersburgo, regência do autor (a Suíte)
Estréias: 18 de dezembro de 1892 — Teatro Mariinsky em São Petersburgo, regência de Riccardo Drigo (o balé completo)

Duração: cerca de 25 minutos (o balé completo dura cerca de 1 hora e trinta minutos)
Efetivo: 2 flautas, 1 flauta-piccolo, 2 oboés, 1 corne-inglês, 2 clarinetas, 1 clarineta-baixo, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, tímpanos, pratos, tamborim, triângulo, glockenspiel, celesta, harpa, e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)

A Suite, selecionada pelo próprio Tchaikowsky antes mesmo do balé completo estrear, para um concerto sinfônico sob sua direção, foi a responsável pelo enorme sucesso desta música. São 8 números de adorável musicalidade e invenção melódica, oriundos dessa obra fantástica extraída do universo do escritor E. T. A. Hoffmann — muito embora a inspiração direta de Tchaikowsky tenha sido tomada da versão de Alexander Dumas (pai).

Trata-se de um conta natalino no qual a menina Clara ganha brinquedos caros do padrinho, mas seu pai resolve guardá-los em seu escritório. Para consolá-la, o padrinho a entretem com um quebra-nozes em forma de soldado. Ao forçá-lo, Clara quebra o quebra-nozes e, triste, passa a embalá-lo em seus raços, cantando uma cantiga de ninar. Após todos irem dormir ela volta à Árvore de Natal e percebe que o quebra-nozes emite uma estranha luz. Inicia-se então um evento fantástico, os ratos aparecem, brinquedos tomam vida, biscoitos em forma de bonecos põe-se a marchar. O quebra-nozes toma a forma de um príncipe e a leva a conhecer seu reino encantado. É no Palácio dos Doces que se passa a cena da qual Tchaikowsky extraiu a maior parte dos números que compõe a Suíte.

I. Ouverture miniature: Allegro giusto 
(Abertura-miniatura: Rápido na medida certa) — cerca de 4 minutos
Para estabelecer o clima mágico, Tchaikowsky cria um efeito, como se nos transportasse para dentro de uma caixinha de música, numa instrumentação muito sutil e delicada. É, no caso, a abertura do próprio balé completo. 

II. Danses caractéristiques: (Danças típicas)

1. Marche: Tempo di marcia viva 
(Marcha: Tempo de marcha viva) — cerca de 2 minutos
Aqui entra a Marcha que segue à montagem da Árvore de Natal, logo no início do Primeiro Ato, quando as crianças se divertem brincando de soldados. Um interessante uso dos metais, revelando o hábil e sofisticado instrumentador que o compositor fora em sua última fase. Os demais números utilizados são todos da cena do Palácio dos Doces no início do Segundo Ato.

2. Danse de la Fée-Dragée: Andante ma non troppo 
(Dança da Fada açucarada: Com calma mas não tanto) — cerca de 2 minutos
A atraente e delicada dança na qual aparece o som da celesta e do glockenspiel para evocar a fada de açúcar nesse .reino de doces e brinquedos Este é o único trecho alterado pelo compositor, finalizando ligeiramente diferente da versão apresentada no balé completo.

3. Danse russe: Tempo di Trepak, molto vivace 
(Dança russa: Tempo de dança folclórica ucraniana, muito vivaz) — cerca de 1 minuto
Tchaikowsky em seu momento mais característico e empolgante, exalando a alma russa como só ele sabia traduzir. 

4. Danse arabe: Allegretto 
(Dança árabe: Sem arrastar) — cerca de 3 minutos
Um trecho muito evocativo, no balé completo utilizado para apresentar o café. Talvez o trecho mais denso da Suíte, apesar de seu inequívoco glacê.

5. Danse chinoise: Allegro moderato 
(Dança chinesa: Rápido moderado) — cerca de 1 minuto
No balé, a dança de apresentação do chá, também muito evocativa e original, trazendo à cena a atmosfera das porcelanas chinesas em seus delicados e detalhados ornamentos.

6. Danse des mirlitons: Moderato assai 
(Dança das flautas de brinquedo: Bem moderado) — cerca de 3 minutos
Um trio de flautas domina o trecho, criando um efeito surpreendente e muito sedutor, certamente a passagem mais brilhante e inventiva de toda a Suíte. 

III. Valse des fleurs: Tempo di Valse 
(Valsa das Flores: Tempo de valsa) — cerca de 7 minutos
A valsa que finaliza a Suíte é, no balé completo, o ante-penúltimo trecho, antes do Pas-de-deux e da Valsa-apoteose final. E permanece como o trecho mais popular, muitas vezes apresentada isolada, descolada tanto da Suíte como da obra completa. Um testemunho do gênio absoluto de um compositor que foi um dos maiores inventores de melodia em toda a história. 

A leveza e doçura da música combinada a uma profundidade emocional que lhe confere densidade e qualidade numa obra que poderia soar apenas ligeira e despretensiosa se explica ao contraste pelo qual o compositor passava naquele momento: se por um lado vivia a glória e o triunfo obtido por sua música no concerto inaugural do Carnegie Hall de Nova York em 1891, por outro ele via-se deprimido com o rompimento abrupto de sua patronesse Madame Von Meck, que retirava não só o suporte financeiro — de que certamente ele nem precisava mais — mas o indispensável apoio emocional nesta estranha relação vivida por cartas e nenhum encontro de presença física em 15 anos de intensa troca de experiências, testemunhos, opiniões artísticas e pessoais.

A Suíte serviu de inspiração para inúmeras adaptações, re-orquestrações e arranjos. O mais famoso produto dessa admiração foi proposto por Duke Ellington em 1960 em seu álbum "The Nutcracker Suite" no qual ele explora as geniais melodias do compositor russo numa releitura jazzística de grande efeito.

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A versão jazzística de Duke Ellington:


O balé completo:



(1922) WALTON Suite "Façade"

Façade, for reciter and ensemble
Façade – An Entertainment

Compositor: William Walton
Data da composição: 1922
Estréia: 12 de junho de 1923 — Aeolian Hall, Londres

Duração: cerca de 1 hora, a música completa — várias Suites de curta duração
Efetivo: 2 flautas, 1 flauta-piccolo, 2 oboés, corne-inglês, 2 clarinetas, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 1 trombone, 1 tuba, tímpanos, bumbo, pratos, xilofone, tamborim, triângulo, glockenspiel, castanholas, chocalho, e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)

Existem várias versões da obra para apresentação em concerto, dentre elas duas Suites selecionadas pelo próprio compositor, uma reunida pelo maestro Simon Rattle, e um balé de maior duração que as Suites. A obra completa, que mescla a instrumentação a um narrador que recita os poemas concretos de Edith Sitwell, grande amiga do compositor, foi modificada pelo próprio Walton em várias ocasiões.

O nome sugere disfarce, fingimento e denuncia certa hipocrisia social, uma vez que a tradução literal "Fachada" serve de gíria para tal comportamento. Trata-se de uma obra híbrida que reúne o espírito do musical, o clima de cabaré, uma inspiração jazzista, sob as tintas do modernismo então vigente. A música é luminosa, bem-humorada, escrita pelo jovem Walton, à época com 20 anos. A popular melodia do cartoon do Marinheiro Popeye, embora não exista nenhuma referência a isso, certamente foi em parte extraída de um dos temas de Walton.

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(1938) GLIÈRE Concerto para harpa

Compositor: Reinhold Moritzevich Glière
Número de catálogo: Opus 74
Data da composição: 1938
Estréia: 23 de novembro de 1938, com a harpista Ksenia Alexandrovna Erdeli, a Filarmônica do Conservatório de Moscou com regência de Leonid Steinberg

Duração: cerca de 25 minutos
Efetivo: harpa solista; 2 flautas, 2 oboeés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 3 trompas, tímpano, e as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

Um concerto de estrutura clássica em 3 movimentos, que se utiliza de uma modesta orquestra — mozartiana, por assim dizer — e tem estética mais parecida a um Schumann ou um Tchaikovsky, como se a peça tivesse sido criada meio século antes. Os andamentos são:

I. Allegro moderato (Rápido moderado) — cerca de 10 minutos
II. Tema con variazioni (Tema com variações) — cerca de 7 minutos
III. Allegro giocoso (Rápido e jocoso) — cerca de 8 minutos

Glière, um compositor ucraniano de ascendência belga, manteve seu estilo inalterado ao longo de sua longa carreira. Não deixou-se influenciar pela Revolução de 1917 e nunca foi incomodado pelo Regime — como seria Shostakovich — pois suas sonoridades agradavam às cabeças soviéticas por justamente manter um escopo tradicionalista e dando vazão ao colorido nacionalista, sem o território perigoso das grandes inovações.

Ele escreveu este Concerto para homenagear Ksenia Erdeli, professora do Conservatório de Moscou, a pioneira do instrumento na Rússia. Ela deu tantas indicações e sugestões que ele, generosamente, ofereceu-lhe co-autoria, honraria que ela recusou.

Trata-se de uma obra de agradáveis sonoridades, belas melodias, e exigência considerável por parte do solo.

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(1937) KABALEVSKY Abertura "Colas Breugnon"

Kola Brjun'on — transliteração de Кола Брюньон
Baseado na novela "Colas Breugnon" de Romain Rolland, 1914

Compositor: Dmitri Kabalevsky
Número de catálogo: Opus 24
Data da composição: 1937
Estréia: 22 de fevereiro de 1938, no Teatro Mikhailovsky de São Petersburgo

Duração: cerca de 5 minutos
Efetivo: 3 flautas, 3 oboeés, 3 clarinetas, 3 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, tímpano, xilofone, caixa clara, bumbo, harpa e as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

A novela escrita por Romain Rolland, sobre o este-carpinteiro da Borgonha que viveu no século XVI, é repleta de anedotas e reflexões bem-humoradas sobre a vida; em suma, um personagem cômico. Aliás, quando Rolland procurou Kabalevsky para propor que o texto fosse transformado em ópera, impôs essa condição, de que Colas não perdesse o caráter satírico: — "Colas sem riso não seria Colas, no resto, você tem carta branca!".

A Abertura, sempre mais popular que a ópera completa, vem sendo eternizada em disco desde Toscanini e agrada por seu frescor alegre e irônico, bem afeito ao espírito do personagem-título. Música festiva, de inequívoco colorido russo.

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Orquestra Filarmônica Tcheca

Česká filharmonie

Fundação: 4 de janeiro de 1896
Sede: Rudolfinum, Alšovo nábř. 12, Praga, República Tcheca

A orquestra tem origem no conjunto que tocava no Teatro Nacional em Praga, e se apresenta pela primeira vez com o nome de "Filarmônica Tcheca" em 1896 sob a batuta de ninguém menos que Antonín Dvořák! Em 1901 torna-se independente do teatro e em 1908 é dirigida por Gustav Mahler na estréia de sua Sétima Sinfonia. Mas a fama internacional da orquestra se firmou sob a direção do maestro Václav Talich, entre 1919 e 1941, uma gestão de duas décadas na qual a orquestra fez seu primeiro registro fonográfico, "Minha Pátria" de Smetana para o selo HMV em 1929.

Talich foi sucedido por Rafael Kubelík que ficou de 1942 a 1948), depois Karel Ančerl de 1950 a 1968 e Václav Neumann de 1968 a 1989. Depois da redemocratização, alguns dos diretores foram Vladimir Ashkenazy de 1996 a 2003 e Eliahu Inbal de 2009 a 2012.

Um conjunto de sonoridade sofisticada, com um passado histórico da maior importância. 

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Pietari Inkinen

Pietari Inkinen

Kouvola, Finlândia, 29 de abril de 1980

Começou estudando violino e piano aos 4 anos de idade e durante a adolescência teve uma banda de rock. Estudou na Academia Sibelius de Helsinque, graduando-se em violino em 2003 e posteriormente em regência em 2005. Especializou-se no violino em Colônia e toca num Carlo Bergonzi de 1732.

Em 2007 foi nomeado diretor assistente da Sinfônica da Nova Zelândia e no ano seguinte, com apenas 28 anos assumia o posto principal. Em 2009 é o principal regente convidado da Filarmônica do Japão, posto que manteve até 2016 quando passa a assumir a direção da orquestra. Desde 2015 é o diretor da Sinfônica de Praga.

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Daniil Trifonov

Дании́л Оле́гович Три́фонов — transliteração: Daniíl Olégovich Trífonov

Níjni Novgorod, Rússia, 5 de março de 1991

Filho de musicistas, ele começou a estudar piano com 5 anos de idade e aos 8 deu seu primeiro concerto com orquestra. Com 17 anos colocou-se em quarto lugar no Concurso Skriabin de Moscou. Em 2009 vai para Cleveland estudar. Em 2010 é o terceiro colocado no prestigiadíssimo Concurso Chopin em Varsóvia e recebe uma medalha especial da Rádio local pela melhor interpretação de uma Mazurka. Em 2011, com 20 anos, é o primeiro colocado no Concurso Arthur Rubinstein em Israel, e no mesmo ano vence também em primeiro lugar o dificílimo Concurso Tchaikowsky em Moscou. Daí para diante sua carreira deslancha, sob o olhar paternal e incentivador do maestro Valery Gergiev. 

Um artista vulcânico ao teclado, com leituras de alta voltagem emocional e imensa profundidade.

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Lawrence Foster

Lawrence Thomas Foster

Los Angeles, Califórnia, 23 de outubro de 1941

Filho de pais romenos, Foster nasceu em Los Angeles e estudou com o regente Fritz Zweig, fazendo cursos de aperfeiçoamento com Karl Böhm e Bruno Walter. Aos 18 anos estreou regendo em Los Angeles e sendo, no mesmo ano, nomeado regente do Balé da cidade de San Francisco. Em 1965, com 24 anos, é contratado como assistente de Zubin Mehta na Filarmônica de Los Angeles. Entre 1969 e 1972 foi o principal regente convidado da Royal Philharmonic em Londres. Já trabalhou como diretor artístico de conjuntos importantes como a Filarmônica de Monte Carlo, a Sinfônica de Jerusalém, a Câmera de Lausanne e a Sinfônica de Barcelona. Desde 2002 é o diretor da Orquestra da Fundação Gulbenkian de Lisboa. Tem especial gosto pela música contemporânea, sendo o responsável por estréias de obras de Birtwistle, Alexander Goehr e Gordon Grosse, e em 1997 regeu a primeira apresentação do Oratório "Standing Stone", incursão no mundo erudito do beatle Paul McCartney.

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Annette Dasch

Annette Dasch

Berlim, 24 de março de 1976

Registro vocal: soprano 

Nascida em Berlim, estudou na Escola de Música de Munique, na Baviera. Em 2000 vence dois concursos de canto, em Barcelona e Genebra. Em 2006 estréia em Munique, na Ópera Estatal, e canta a Dona Elvira do Don Giovanni de Mozart no Festival de Salzburg. Em 2008 grava um CD de árias que recebe aclamação da crítica especializada. Sua voz pura e poderosa lhe garante colocação nos melhores palcos do mundo, em óperas e concertos.

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Jana Boušková

Jana Boušková

Praga, 27 de setembro de 1970

Jana estudou na Universidade de Ostrava e no Conservatório de Praga onde foi aluna da própria mãe, a grande harpista Libuše Váchalová. Aperfeiçoou-se nos Estados Unidos, na Universidade de Indiana. Em 1992 vence em primeiro lugar, nos Estados Unidos, o importante Concurso de Harpistas, e destaca-se em premiações em Israel, Paris e Roma. É a harpista principal da Filarmônica Tcheca e uma das mais requisitadas solistas de seu instrumento no mundo.

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Michael Sanderling

Michael Sanderling

Berlim, 21 de fevereiro de 1967

Filho do lendário maestro Kurt Sanderling e da contra-baixista Barbara, o mais novo dos três irmãos — todos regentes: Thomas e Stefan — começou a estudar violoncelo com 11 anos de idade, e após estudos com renomados instrumentistas, dentre eles Yo-Yo ma, foi nomeado por Kurt Masur, aos 20 anos em 1987, o violoncelista principal da Orquestra da Gewandhaus em Leipzig. 

Em 200o estreou como regente em Berlim e manteve as duas atividades em paralelo, apresentando-se também como violoncelista. Mas sua nomeação em 2010 como regente-principal da Filarmônica de Dresden, substituindo o renomado Rafael Frübeck de Burgos, o fez optar exclusivamente pelo pódio.

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(1800) BEETHOVEN Sinfonia n. 1

Compositor: Ludwig van Beethoven
Número de catálogo: Opus 21
Data da composição: 1799 a 1800
Estréia: 2 de abril de 1800 — em Viena, no Burgtheater, regência do autor

Duração aproximada: 30 minutos
Efetivo: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpano e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

Após experimentar-se em dois Concertos para piano, Beethoven investe sua força criativa num gênero que vinha crescendo em demanda e era dominado com total genialidade por seu mestre e professor Joseph Haydn: a Sinfonia. As Sinfonias, eram, até bem pouco tempo, um extrato de obras maiores, como óperas, oratórios e cantatas, e designavam sua parte não cantada, seu trecho puramente instrumental, o que, modernamente passamos a chamar de Abertura. Com o advento das orquestras regulares e suas apresentações cada vez mais frequentes, as Sinfonias passaram a representar parte do repertório e a sofisticar-se na estrutura, tornando-se, com o tempo, um produto independente, e tendo no talento de Haydn seu norte definidor.

É nesta fórmula firmada por Haydn em mais de 100 Sinfonias — a última delas, numerada hoje como 104, foi apresentada em Londres numa temporada de concertos em 1795 — que nosso Beethoven, então com 30 anos, se apóia. Mas, como sabemos, os caminhos musicais apontavam em direções mais ambiciosas, e essa obra é a centelha que fará desabrochar a Sinfonia como um novo veículo para desague de um conteúdo mais profundo, pleno em sentimentos e emoções.

I. Adagio molto — Allegro con brio 
(Muito calmamente — Rápido e com brio) — cerca de 10 minutos
Obedecendo à estrutura tradicional da Forma-Sonata (uma introdução lenta, a exibição do tema, a exibição de um segundo tema, a repetição do primeiro, o desenvolvimento, que era a conversa entre os dois temas, a re-exposição do tema principal e a chamada coda ou finalização da idéia), Beethoven encaixou-se no esperado. Mas o primeiro acorde já desconcerta a platéia — a de 1800, não nossos ouvintes de hoje! — com uma dissonância. Sim, repare atentamente ao acorde inicial. Repare que a nota da flauta parece deslocada, fora do lugar. Ali está a dissonância, que se repete no segundo acorde. Para nossos ouvidos, que já passaram pelos Stravinskys e Prokofievs, tal atrevimento passa imperceptível. Mas o nobre apertado em sua roupa debruada com bordados infinitos, a peruca lhe abafando o crânio, que ia ao teatro esperando suaves harmonias, temeroso de um Napoleão em seu encalço, esse certamente sentiu essa dissonância, bem como os ferozes ataques das cordas e os crescendos vigorosos, como ofensa pessoal. Um crítico, presente à estréia, destilou: — "Mais parece música militar, [...] só consegue atordoar, sem jamais atingir ao coração". Pois é justamente o coração, talvez com incômodo para a realidade da época, é que é atingido, daí a força que as Sinfonias de Beethoven irão exercer nos músicos posteriores. O movimento segue chacoalhando as melodias graciosas que se esperasse encontrar em Mozart ou Haydn, levando-as a um limite cheio de tensão.

II. Andante cantabile con moto 
(Confortavelmente, cantável e com movimento) — cerca de 6 minutos
Inicia-se lírico, ao modo de Haydn, mas logo se perceberá por baixo do tecido sonoro, educado e cortês, um vulcão a ebulir, fazendo tremer o solo sagrado da estética clássica. Há elegância nos diálogos entre os sopros e as cordas, há beleza melódica, e também inventividade. Mas, como no movimento anterior, o ouvinte é colocado numa fronteira de onde se pode ver o Romantismo e sentir a baforada de seus ventos turbulentos. É como o caminhante que, ao chegar ao cume de uma montanha, vê diante de si a paisagem que alcançará. Ela está lá, mas há ainda um caminho a percorrer...

III. Menuetto: Allegro molto e vivace 
(Passo miúdo: Muito rápido e com vivacidade) — cerca de 4 minutos
Minueto? Bem, sejamos claros, esse movimento é um Minueto só no título. Até então, toda Sinfonia tinha um Minueto, e depois dessa obra, a prática cairá, progressivamente, em desuso. É por iniciativa do próprio Beethoven, que já na Segunda Sinfonia adotará um Scherzo como terceiro movimento de Sinfonia, sepultando a prática do Minueto sem maiores cerimônias. Mas, de fato, isso já aconteceu aqui. Esse movimento em nada se assemelha à dança de côrte francesa, o passo-miúdo, tantas vezes burilado, por Haydn, Mozart, Bocherini, Johann Stamitz, Carl Friedrich Abel e muitos outros; ele é, na verdade, um Scherzo, agitado, contundente, num andamento vertiginoso que seria impossível adotar num Minueto.

IV. Finale: Adagio — Allegro molto e vivace 
(Final: Com calma — Muito rápido e com vivacidade) — cerca de 6 minutos
O finale surpreende ainda mais: uma introdução lenta, não usual para um último movimento, inicia-se em explosão, criando um clima de apreensão que dará lugar, de surpresa, ao alegre tema do movimento. É um trecho curto, conciso. A obra é concluída com luminosidade, graça e imenso poder sinfônico. Nota-se, nesse movimento, a compreensão de Beethoven da orquestra enquanto organismo único, ao passo que, de certa maneira, seus contemporâneos tratavam o conjunto instrumental como uma união de diferentes vozes, ele a vê como uma voz uníssona. 

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Alisa Weilerstein

Alisa Weilerstein

Nova York, 14 de abril de 1982

Instrumento: William Forster, 1790

Nascida numa família de músicos, com o pai violinista, mãe pianista e irmão regente. Começou a estudar violoncelo com 4 anos de idade, e com apenas 13 já tinha talento e treino suficiente para estrear como solista num concerta da renomadíssima Orquestra de Cleveland. Paralelo à carreira de solista virtuose, apresenta-se com os pais em música de câmara, formando o Weilerstein Trio. Não bastassem tantos vínculos familiares na área musical, casou-se com o regente venezuelano Rafael Payare.

Ela se apresenta tocando um violoncelo construído pelo lutarei inglês William Forster em 1790. Essa escolha pouco comum ela justifica pelas maravilhosas sonoridade do instrumento, e brinca: — "Todo mundo que ouve meu cello pensa que é um Stradivarius ou um Amati!". Seu estilo é grandiloquente, encorpado, produzindo um toque aveludado e cheio de vida.

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(1788) MOZART Sinfonia n. 41 "Júpiter"



Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Número de catálogo: K. 551
Data da composição: durante o verão, completada a 10 de agosto de 1788
Estréia: [não se sabe ao certo]

Duração: cerca de 40 minutos
Efetivo: 1 flauta, 2 oboés, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpanos, e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)

A última Sinfonia de Mozart é chamada Júpiter, talvez pelo pelo empresário de concertos Johann Peter Salomon, mas não se sabe ao certo; o fato é que o nome pegou. E é justificável, face à energia de juventude associada ao deus dos romanos, o próprio Zeus na mitologia grega. Com respeito à numeração, vale o número 41 pois assim Mozart a listou em seu catálogo, mas hoje sabemos que existem cerca de 60 Sinfonias, graças a descobertas que não param de surpreender.

I. Allegro vivace (Vivazmente rápido) — cerca de 12 minutos
O maestro Nikolaus Harnoncourt defendia a idéia — à qual me associo — de que as três últimas Sinfonias são, na verdade, um ciclo. Sendo assim, ela parte de onde a número 40 parou. Todas as dúvidas suscitadas na obra anterior, aqui se convertem em certeza afirmativa. Uma exclamação vitoriosa é entoada logo de início, sem a introdução lenta à la Haydn, e os violinos respondem com uma frase docemente gentil. Segue-se uma marcha, vigorosa e viril. Os sopros insinuam alguns questionamentos, mas o discurso das cordas é tão mais forte que os carrega de roldão. Não é difícil notar, aqui, que Beethoven não teria, dali um par de décadas, outro caminho senão sacudir a realidade sinfônica, como de fato o fez. Há, em cena, um heroismo inequívoco.

II. Andante cantabile (Confortavelmente e cantarolável) — cerca de 9 minutos
Uma página reflexiva e densa, que traz algo de rústico. Uma quietude inicial, proposta pelas cordas, logo é contestada por passagens abruptas. É um movimento ambíguo: a partitura pede cantabile, mas a música parece querer rebeldia. Elementos antagônicos são postos em confronto a todo o tempo, floreios são respondidos com violência, passagens doces parecem ser repreendidas. Uma música que guarda muitos mistérios por baixo de uma roupagem elegante.

III. Menuetto: Allegretto (Passo miúdo: Sem arrastar) — cerca de 5 minutos
De volta ao clima de certeza do primeiro movimento, uma dança aristocrática com ares de altivez. Mas o sinfonismo desse Minueto o diferencia, por densidade, daqueles de Haydn, e dos próprios minuetos mozartianos. O material é robusto, num gênero que, em geral, comporta melhor frases mais triviais e singelas.

IV. Molto allegro (Bastante rápido) — cerca de 11 minutos
Pela primeira vez numa Sinfonia — e, outra vez, prenunciando Beethoven — um finale que tem peso equivalente ao movimento inicial, equilibrando a obra. Explico-me melhor: as Sinfonias tinham, em sua estrutura, mais densidade no movimento primeiro, sendo os três seguintes como que meros desdobramentos. Na Júpiter, temos, pela primeira vez um finale com a mesma densidade e importância do primeiro movimento, o que dá à obra uma outra conjuntura, tornando-a mais robusta e sinfonicamente mais equilibrada. Esse expediente seria consolidado por Beethoven em sua Quinta Sinfonia, exatos 20 anos depois. Trata-se também de um tratado magnífico e genial de fuga e contraponto, algo também inédito em uma Sinfonia. Acontece que no Classicismo as vozes em fuga eram trabalhadas a três, e o que temos aqui é m complexo sistema de uma fuga a cinco vozes! Mozart reuniu toda sua sabedoria acumulada em anos de árduo trabalho e nos brinda com um monumento contrapontístico de proporções antológicas. A ciência do contraponto — ponto-contra-ponto, ou seja: a arte de combinar notas em oposição, aproximando e afastando a distância dessa articulação, cujo expoente máximo foi Bach — é dificílima e no Classicismo acabou um pouco relegada para se dar espaço ao desenho das belas melodias, simplificando-se o acompanhamento para que ele não interferisse na idéia principal; Mozart resgata, aqui, essa arte, e deixa como legado um dos finales mais interessantes e empolgantes de todos os tempos.

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(1788) MOZART Sinfonia n. 40

Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Número de catálogo: K. 550
Data da composição: durante o verão, completada a 25 de julho de 1788
Estréia: [não se sabe ao certo]

Duração: cerca de 35 minutos
Efetivo: 1 flauta, 2 oboés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 2 trompas, e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)

A Sinfonia de número 40 é a segunda no conjunto das últimas três Sinfonias do autor, terminada um mês após a anterior. A partitura dela é de instrumentação mais leve, sem trompetes nem tímpano. Impressiona o fato de que, num espaço de dois meses, Mozart concluiu, uma seguida da outra, suas três últimas Sinfonias, a 39, essa e a 41. Ou seja: se cada uma tem 4 movimentos, totalizando 12 movimentos em 60 dias, o que dá uma média de 5 dias para escrever cada movimento... um verdadeiro assombro!

I. Molto allegro (Bastante rápido) — cerca de 9 minutos
Sem introdução lenta, uma valsa febril — ainda que, sabemos, a valsa não tivesse nascido — se apresenta, de imediato. Um tema tão atrativo e tão genial que, ao lado do tema da Eine kleine, será um dos mais conhecidos e populares do compositor. O movimento apresenta inquietação, lirismo e sedução. Estão presentes, amalgamados, a elegância do Classicismo nos seus extertores e o patos do Romantismo ainda por surgir. As perguntas que surgem nos sopros são vigorosamente respondidas pelas cordas. Há um sentimento de urgência nesse diálogo, mas o véu da estética classicista modera os ânimos, combinando uma força que quer escapar e fazer crescer vertiginosa a música enquanto um sentimento de comedimento segura os acordes e os mantém dentro da fronteira da beleza harmônica. Um verdadeiro embate, magistral, entre o desejo sublime de ir adiante e a consciência de que é preciso enquadrar-se (um modus operandi que o compositor, curiosamente, não consegui aplicar à própria vida!).

II. Andante (Confortavelmente) — cerca de 8 minutos
É como se aquela valsa sôfrega encontrasse conforto na resignação. Uma frase de contida beleza, na qual as cordas fluem lentamente seu curso enquanto os sopros, delicadamente, sugerem um caminho mais questionador, ao que as cordas acabam cedendo no decorrer do movimento. O resultado é de uma beleza lancinante, e sugere um acúmulo de energia que deverá ser resolvido nos movimentos posteriores.

III. Menuetto: Allegretto (Passo miúdo: Sem arrastar) — cerca de 5 minutos
E será aqui que a tensão criada no Andante resolve-se. Quase selvagem — guardadas as proporções da estética da época — para um minueto, prenuncia o esgotamento dessa fórmula: não será por acaso que Beethoven, uma década e meia mais tarde abandonará os minuetos em Sinfonias, em favor dos ásperos e contundentes Scherzos. A parte central é gentil, conciliadora, como se fosse a âncora que coloca o movimento em seu tempo. Mas o retorno do impositivo andamento inicial não deixa dúvidas de que esse é um minueto que não cabe em si, querendo transformar-se em outra coisa.

IV. Finale: Allegro assai (Final: Rápido mesmo) — cerca de 9 minutos
Estamos de volta à transmutação do tema com que Mozart abre a obra, mas aqui ele se dilui numa vertiginosa espiral, como se aquela agradável e melancólica melodia do primeiro movimento buscasse e si mesma e não pudesse mais se reconhecer. Um movimento de extraordinária força, incomum em finales de Sinfonias dessa época. As passagens de dúvida ainda lampejam (quase sempre nos sopros) e são arrastadas pelas contundentes respostas das cordas rumo a um caminho resoluto, que se não é cheio de certezas, ao menos é a aceitação altiva da incerteza. Não devemos deixar de notar que dali a meses, no ano seguinte, a Revolução Francesa começaria a virar a realidade social européia de pernas para o ar...

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(1788) MOZART Sinfonia n. 39

Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Número de catálogo: K. 543
Data da composição: durante o verão, completada a 26 de junho de 1788
Estréia: [não se sabe ao certo]

Duração: cerca de 30 minutos
Efetivo: 1 flauta, 2 clarinetas, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpano, e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)

A Sinfonia de número 39 faz parte de um conjunto de três obras, junto com a 40 e a 41, escritas em sequência no verão de 1788, sendo as últimas obras do gênero do compositor. Embora tenha vivido mais 3 anos, ele não se dedicaria outra vez a uma Sinfonia. Chama a atenção o fato da partitura não pedir oboés (a única dele assim), e sim um par de clarinetas, a novidade da época, e, por isso mesmo, nem sempre disponível, o que talvez reforce o quão engajado o compositor estava em impor o novo instrumento.

I. Adagio — Allegro (Calmamente — Rápido) — cerca de 9 minutos
Atipicamente para uma Sinfonia mozartiana, temos uma impositiva e contundente abertura em adagio, à guisa de introdução (Mozart, contrariando o modelo de Haydn, sempre iniciava suas Sinfonias diretamente no tempo rápido, expondo de cara o tema inicial). O conteúdo da música, um tanto épico e imperial, prenuncia uma mudança de gosto que só viria mais tarde, com as Sinfonias de Beethoven, dramaticamente mais densas e contendo, naturalmente, um sentido de grandeza na obra em si; temos de lembrar que as platéias do final do século XVIII esperavam que uma Sinfonia fosse algo leve, ligeiro, divertido. Não é o que se tem nessa magnífica obra: o primeiro movimento é encorpado, cheio de significado.

II. Andante com moto (Confortavelmente, com movimento) — cerca de 9 minutos
O movimento lento começa muito calmamente, tendo apenas as cordas a desenhar a frase. Numa segunda frase a flauta e as clarinetas intervém com uma belíssima passagem cheia de lirismo, mas deixando no ar certa apreensão e nervosismo.

III. Menuetto (Passo miúdo) — cerca de 4 minutos
Um Minueto típico das Sinfonias do autor, porém com uma graça mais sarcástica (estaria ele, outra vez, prenunciando Beethoven?; no caso a inclusão do Scherzo como terceiro movimento). Na parte central, uma melodia no estilo de um realejo, muito cativante, entoada pelas clarinetas, uma "cantando" e a outra fazendo-lhe o jocoso contraponto, enquanto a flauta ecoa o canto principal. Um desses milagres musicais que só ouvimos em Mozart. Retorna, para concluir, a marcação marcial do início.
 
IV. Allegro (Rápido) — cerca de 5 minutos
Com extraordinária energia, um tema gracioso e ágil se impõe, e somente com ele Mozart ir;a até o fim, tratando-o em contraponto, brincando com ecos, escorregando a melodia de um naipe de instrumentos a outro, num jogo delicioso e original, até concluir altivamente.

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(1893) DVOŘÁK Sinfonia n. 9, "do Novo Mundo"

Z nového světa — From the New World

Compositor: Antonín Dvořák
Número de catálogo: Opus 95 / B 178
Data da composição: 10 de janeiro a 24 de maio de 1893
Estréia: 16 de dezembro de 1893 — Nova York, no Carnegie Hall, a New York Philharmonic sob regência de Anton Seidl

Duração: cerca de 43 minutos
Efetivo: 1 flauta-piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 1 corne-inglês, 2 clarinetas, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, tímpano, pratos, triângulo e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)



Em Junho de 1891 a milionária americana Jeanette Thurber, que havia conseguido aprovação do Congresso para fundar um Conservatório Nacional de Música em Nova York nos parâmetros do Conservatório francês — o que significava aceitar os estudantes por mérito, e não por indicação, o que, na prática, abria espaço a quem tivesse talento, não importando sexo, religião ou cor — convidou Dvořák para dirigir a instituição. Se era para ter um músico nacionalista para forjar a nova música da América, que fosse o melhor, disse a ela o próprio Tchaikovsky. A princípio, o compositor tcheco titubeou, mas logo a realidade do salário, 25 vezes superior ao seu em Praga, falou mais alto.  

Em 26 de setembro de 1892 Dvořák desembarcava em Nova York com a mulher e dois de seus 6 filhos. Tinha início sua aventura na América, que duraria dois anos e meio, até 1895. A Sinfonia sobre a qual nos debruçamos aqui é a tradução musical do impacto que esse "novo mundo" — nome que ele quis dar à obra — teve sobre ele.

I. Adagio — Allegro molto (Calmamente — Muito Rápido) — cerca de 9 minutos
A introdução lenta, majestosamente calma, já nos indica que uma grande obra, de profundo impacto, está se iniciando. Curioso que as primeiras sonoridades desse Adagio parecem mesmo é eslavas. É, talvez, como se fosse o autor se colocando na obra, chegando ao "Novo mundo". Mas logo uma atmosfera de frescor e grandiosidade domina a orquestra, e sentimos a referência, numa melodia muito característica da flauta, logo repetida pelos violinos, e replicada pela fanfarra, às influências irlandesas na América, e não se envergonhe caso lhe venha à lembrança os velhos filmes de faroeste, pois se estes ainda estavam por vir naquele longínquo 1893, o sabor daquela paisagem está descrito nesta música! A maestria com que Dvořák maneja o colorido orquestral é imensa, e suas invenções melódicas, aqui, o igualam ao melhor de Tchaikowsky. 

II. Largo (Bem devagar) — cerca de 13 minutos
Os trombones desenham uma paisagem espaçosa, e logo o corne-inglês entoa a melodia mais memorável desta obra. Ainda que o próprio Dvořák tenha dito em vida — inclusive em entrevista aos jornais novaiorquinos no dia da estréia — que não se utilizou de nenhum tema pré-existente, lemos em vários ensaios que ele teria se apropriado de lamentos dos negros (os spirituals) e de canções dos nativos indígenas. Esqueçam essa bobagem: é tudo original, dele. Mas, sem dúvida, não só lembra como parecem citações. Um desses temas foi transformado em 1992 na canção "Going home" por seu pupilo William Arms Fisher, ajudando a celebrizar ainda mais a obra. Num dado momento, algo da Pastoral de Beethoven parece vir à cena. É um movimento lento de uma majestade, de uma beleza indescritíveis. 

III. Scherzo: Molto vivace (Jogo: Muito vivaz) — cerca de 8 minutos
Não se assuste: a similitude com Beethoven é intencional. Sim, o início se parece com o Scherzo da Nona de Beethoven, é uma clara homenagem. E outra homenagem entra em cena: Dvořák estava mergulhado no poema épico "The Song of Hiawatha", do poeta americano Henry Wadsworth Longfellow que retrata índios nativos da América do Norte, e quis neste scherzo colocar em música a cena da dança ritual, uma festa na floresta. Outras frases são tipicamente eslavas, certamente suas reminiscências da Europa Central, mas talvez, também, sua percepção de que o folclore, aqui e acolá, acaba tendo elementos comuns.

IV. Allegro con fuoco (Rápido, com fogo) — cerca de 11 minutos
Num crescendo vertiginoso, a orquestra vai tomando fôlego até impor uma marcha de impacto magnífico. Há, aqui, um pouco de Wagner, e um pouco de Tchaikovsky (de quem Dvořák acabara de conhecer a Quinta Sinfonia). E muito Brahms, uma influência fortíssima, e a esta altura um amigo, com passagens que suscitam as Danças Húngaras. Trabalhando a idéia da forma cíclica, vamos ouvir voltar vários episódios dos movimentos anteriores.  Como dizia Leonard Bernstein, com seu humor peculiar, é a primeira Sinfonia multinacional. 

Um ocorrido não-musical e de pouca importância para a compreensão da obra, mas que se soma à esta análise como curiosidade: em 1969, ao pousar na Lua a Missão Apollo-11, o astronauta Neil Armstrong fez tocar uma gravação da Sinfonia do Novo Mundo, pois a obra tornara-se um ícone americano. Trata-se, portanto, da primeira Sinfonia tocada fora da atmosfera terrestre...

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(1874) WAGNER "Viagem de Siegfried" e "Marcha fúnebre" da ópera "O Crepúsculo dos Deuses"

Der Ring des Nibelungen, Dritter Tag "Götterdämmerung"
(Terceiro Dia do "Anel dos Nibelungos", "O Crepúsculo dos Deuses")

Compositor: Richard Wagner
Número de catálogo: WWV 86-D
Data da composição: 1869 a 1874
Estréias: 25 de março de 1875 — Viena, na Musikverein, a Filarmônica sob regência do autor (somente trechos em concerto)
Estréias: 17 de agosto de 1876 — Bayreuth, regência de Hans Richter (ópera completa)

Efetivo: 2 falutas-piccolo, 3 flautas, 3 oboés, 1 corne-inglês, 3 clarinetas, 1 clarineta-baixo, 3 fagotes, 8 trompas, 4 tubas-wagnerianas, 3 trompetes, 1 trompete-baixo, 3 trombones, 1 trombone-baixo, 1 trombone-contra-baixo, 1 tuba, tímpanos, 1 caixa-clara, triângulo, pratos, tam-tam, glockenspiel, 6 harps, as cordas (16 primeiros- e 16 segundos-violinos, 12 violas, 12 violoncelos, 8 contra-baixos)

Orchesterzwischenspiel vor dem I. Aufzug: "Siegfrieds Rheinfahrt"
(Interlúdio orquestral antes do Ato I: "Viagem de Siegfried pelo Reno")
Duração aproximada: 11 minutos

A Viagem de Siegfried pelo Reno se dá depois do breve prólogo, à guisa de interlúdio para preparar o primeiro ato desta ópera que é a quarta e última parte do ciclo intitulado "O Anel dos Nibelungos". Para não nos estendermos tremendamente numa trama que demanda 4 noites e mais de 15 horas de música, fiquemos com o herói desta saga, Siegfried, que após consumar o amor com Brünnhilde e dar a ela, em sinal de fidelidade, o anel, recebe das mãos dela seu cavalo e seu escudo de Valquíria, com os quais partirá para dar seguimento às suas aventuras (esta cena, na ópera montada, é continuidade do final de "Siegfried", a ópera anterior). Durante o desenrolar deste breve trecho instrumental — afinal, o que são 11 minutos em 15 horas? — são utilizados, habilmente por Wagner, temas das óperas anteriores — a saber: "O Ouro do Reno", "A Valquíria" e "Siegfried" — como que dando ao ouvinte uma lembrança de tudo o que já ocorreu, e indicando, através de sua sublime e sugestiva música, que a coisa toda não irá terminar bem...

Trauermusik des III. Aufzugs
(Marcha fúnebre de Siegfried, do Ato III)
Duração aproximada: 10 minutos

Aqui, mais uma vez, proponho nos abstermos de tentar entender uma trama tão complexa. Simplificando ao limite máximo, o que temos é o cortejo fúnebre de Siegfried, morto pelas costas na passagem anterior. Esta é a mais contundente e dramática das Marchas fúnebres, na história da música. Seu poder de sugestão, sua força e pungência, a teatralidade com que Wagner, ao mesmo tempo, comove e assusta, demandam pouca ou nenhuma explicação. Sente-se na carne e na alma a desesperança e o temor da morte. Nosso autor, de reconhecidas patifarias, demonstra aqui o porquê seu nome, esquecidas as canalhices, está no altar maior do panteão musical, junto a Beethoven, Bach e os grandes: sua arte é sublime, como poucas podem ser.

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Jornada de Siegfried no Reno:


Marcha fúnebre de Siegfried:

(1842) CHOPIN Balada n. 4

Compositor: Fryderyk Chopin
Número de catálogo: Opus 52 / CT 5
Data da composição: 1842
Estréia: [provavelmente em audição privada, no ambiente doméstico]

Duração: cerca de 10 minutos
Efetivo: piano

É a última das 4 Baladas de Chopin. Escrita durante o verão de 1842, os registros sugerem que ele se debruçou nela por mais tempo que nas outras; e o resultado é mais introspectivo, não tão calmo como o da Terceira, mas com uma ebulição interna mais efervescente, ainda que contida. O estilo flamboyant de Chopin passear pelo teclado é usado dentro de um controle maior da respiração musical, como se o compositor tentasse prevenir uma exaltação iminente. Termina numa explosão final de arrebatamento que finalmente escapa da vigilância imposta ao longo da trajetória proposta na peça.

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Balada

O termo vêm do francês "Ballade" e surge na Provença por volta do século XIII advindo da idéia de uma peça simples, "para bailar". No século XIV adquire contornos de narrativa em três partes juntado-se à Canção do Trovador — a Chanson trouvé — e espalha-se pela Europa, abandonando a característica original do termo, o bailar, e firmando-se como um recurso do contador de histórias (o trovador), que sempre a entoava em 4 partes de igual duração: 3 estrofes e uma dedicatória. 

O primeiro a aplicar o termo como música instrumental pura foi Chopin, e suas Ballades mantém a estrutura de narrativa, porém tornando-se abstrata no conteúdo, deixando que a possível história a ser contada se forme no imaginário do ouvinte. Logo será seguido por Liszt, César Franck, Brahms, entre outros.

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(1841) CHOPIN Balada n. 3
(1842) CHOPIN Balada n. 4

(1841) CHOPIN Balada n. 3

Compositor: Fryderyk Chopin
Número de catálogo: Opus 47 / CT 4
Data da composição: 1841
Estréia: [provavelmente em audição privada, no ambiente doméstico]

Duração: cerca de 7 minutos
Efetivo: piano

Escrita durante o verão de 1841 em Nohant-Vic, no interior da França, na agradabilíssima propriedade de Georg Sand, contemporânea da criação do Prelúdio n. 25 e com características semelhantes no que diz respeito ao clima estabelecido pela música. Ao contrário das baladas anteriores, mais emocionalmente agitadas, esta traz uma atmosfera calma, e predominam os momentos de brilho, embora possamos encontrar, aqui e ali, a nostalgia característica do autor. Inicia-se muito calmamente, como uma prece singela, e vai, num crescendo, adquirindo uma respiração mais intensa, mantendo a reflexão e ganhando em consistência, até que a verve épica que toda Balada deve ter impõe-se na passagem final, para concluir com grande altivez.

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(1841) CHOPIN Prelúdio n. 25

Compositor: Fryderyk Chopin
Número de catálogo: Opus 45 / CT 190
Data da composição: 1841
Estréia: [provavelmente em audição privada, no ambiente doméstico]

Duração: cerca de 5 minutos
Efetivo: piano

Escrito durante o verão de 1841 na agradabilíssima propriedade de Georg Sand em Nohant-Vic, no interior da França. Sua criação coincide com um tempo particularmente calmo e feliz da vida do compositor; seus visitantes nessas estadias em Nohant incluem o pintor Eugène Delacroix e a cantora Pauline Viardot. Por isso, este Prelúdio tem a atmosfera encantadora e algo pastoril. Posterior ao ciclo de 24 Prelúdios publicados no opus 28, este apresenta-se isolado, como peça independente, e foi publicado sozinho como seu opus 45.

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(1895) DVOŘÁK Concerto para violoncelo

Compositor: Antonín Dvořák
Número de catálogo: Opus 104 / B 191
Data da composição: de 8 de novembro de 1894 a 9 de fevereiro de 1895
Estréia: 19 de março de 1896 — Londres, solo de Leo Stern e regência de Dvořák

Duração: cerca de 40 minutos
Efetivo: o violoncelo solista; 1 flauta-piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 3 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, tímpanos, triângulo, as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)




Dvořák escreve sua última obra para orquestra, este Concerto, em Nova York. Enquanto a chamada "Sinfonia do Novo Mundo", sua Nona, escrita dois anos antes, está prenhe de exaltação à América e esse novo mundo, o Concerto para violoncelo denuncia uma irremediável nostalgia da Bohemia natal.  

O compositor vinha recebendo, até com certa insistência, o pedido do violoncelista Hanuš Wihan que compusesse um Concerto para este instrumento, mas Dvořák achava a sonoridade do violoncelo "anasalada demais nos agudos e murmurante demais nos graves". O ímpeto de escrever a obra veio depois da estréia, no Conservatório Nacional de Nova York, instituição que ele dirigia, do Concerto escrito pelo colega irlandês Victor Herbert. Concluída a empreitada, Wihan recebeu a dedicatória da partitura, mas um problema de agenda o impediu de tocar na estréia da obra, em Londres, e o violoncelista inglês Leo Stern foi o responsável pela primeira apresentação, com o autor na regência.

Wihan sentiu falta das cadenzas e propôs a Dvořák que colocasse uma em cada movimento, mas o compositor recusou a idéia. Além disso, outra diferença sensível em relação à outros Concertos para violoncelo: a presença, na orquestra, de trombones e tuba. Os trombones são, em geral, evitados em Concertos, pois tornam o som da orquestra bem mais pesado; e com o agravante de competir, por tocar no mesmo registro mas com muito mais potência, diretamente com o violoncelo, denunciando a timidez de sua sonoridade. Mesmo com isso, é um dos mais belos Concertos para violoncelo do repertório, e popularíssimo.

São 3 movimentos:

I. Allegro (Rápido) — cerca de 15 minutos
A orquestra apresenta-se a princípio placidamente, para logo encorpar-se num crescendo impositivo, entoando o primeiro tema (inspirado na Quarta de Brahms!); numa passagem mais calma, a trompa apresenta um segundo tema, cheio de candura. Após uns acordes típicos do compositor e logo o violoncelo irá entrar, como que improvisando em cima do primeiro tema. O decorrer do discurso faz  o solista alternar-se entre o brilho do virtuosismo e a intimidade que a sonoridade do violoncelo proporciona. E da orquestra vem as passagens tão eslavas, cheias de colorido e pulsação. . 

II. Adagio, ma non troppo (Calmamente, sem exagero) — cerca de 12 minutos
Durante a composição da obra, em Nova York, Dvořák recebe notícias do estado de saúde de sua cunhada, Josefina Kounicová. Ele havia sido apaixonado por ela na juventude, mas não fora correspondido e acabou casando-se com a irmã mais nova e ela com um Conde, mas as famílias permaneceram sempre muito próximas. É homenageando-a que ele escreve esse movimento, com um doce tema inicialmente insinuado pela clarineta mas logo tomado pelo violoncelo, em atmosfera de oração. Pode-se ouvir o violoncelo chorar as lembranças de juventude. A orquestra corta-lhe o discurso contundentemente, e o violoncelo canta um outro tema, agora reflexivo, saudoso, e jubiloso. É uma das passagens mais expressivas do autor. Dvořák recebe então a notícia da morte de Josefina e acaba inserindo, onde deveria figurar uma cadenza, o tema de sua canção de sua autoria "Deixe-me sozinho", a favorita dela, criando uma prece antes da conclusão do movimento. 

III. Finale: Allegro moderato — Andante — Allegro vivo 
(Final: Moderadamente rápido — Confortavelmente — Rápido e vivo) — cerca de 13 minutos
A orquestra entra com uma marcha que vai crescendo aos poucos, como o som da respiração. A estrututa é a de um Rondò (cíclica, com um tema reaparecendo a cada repetição, sempre ao lado de um novo tema). É o movimento com mais sabor eslavo da partitura. A riqueza dos temas, o colorido orquestral, tudo concorre para um finale apoteótico, como os finales devem ser!  Mas pouco antes da conclusão derradeira, ele relembra calmamente o tema de abertura do primeiro movimento e insere a prece já enxertada em homenagem a Josefina e termina de maneira grandiosa, com a presença dos trombones mostrando sua eficiência, em acordes conclusivos de uma força impressionante. 

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(1896) DVOŘÁK Poema Sinfônico "A Bruxa do Meio-dia"

Polednice

Compositor: Antonín Dvořák
Número de catálogo: Opus 108 / B 196
Data da composição: de 11 de janeiro a 27 de fevereiro de 1896
Estréia: 21 de novembro de 1896 — Londres, regência de Henry Wood

Duração: cerca de 15 minutos
Efetivo: 1 flauta-piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 1 clarinete-baixo, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, tímpanos, bumbo, pratos, glockenspiel, triângulo, as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

Um Poema Sinfônico baseado numa lenda tradicional eslava, "Polednice" ou a "Velha do Meio-dia":

Ocupada em seus afazeres domésticos, uma mãe exaspera-se com as traquinagens de seu filho (a pontuação isistente do oboé no início da peça). Ela avisa ao menino que se ele não se comportar, ela irá convocar a bruxa do meio-dia para levá-lo embora. Ele desobedece e, para horror da mulher, a bruxa realmente chega ao meio-dia. A criatura demoníaca exige a criança. A mãe, com medo, agarra seu filho, e desmaia, tentando protegê-lo. Às doze badaladas do relógio, a bruxa consegue o intento... Mais tarde, o pai chega em casa e encontra sua mulher desfalecida com o corpo morto de seu filho nos braços. A mãe tinha sufocado acidentalmente seu menino enquanto tentava salvá-lo da bruxa. A história termina com o lamento do pai sobre o terrível acontecimento.

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(2008) WIDMANN Abertura "Con brio"

Con brio, Konzertouvertüre für Orchester

Compositor: Jörg Widmann
Número de catálogo: não tem
Data da composição: 2008
Estréia: 25 de setembro de 2008 — Gasteig em Munique, Sinfônica da Rádio da Baviera, Mariss Jansons regendo

Duração: cerca de 12 minutos

Uma peça interessantíssima, que o clarinetista e compositor alemão Jörn Widmann compôs por sugestão do maestro mais Jansons. Partindo de temas da Sétima e da Oitava Sinfonias de Beethoven, passando-os por seu filtro contemporâneo, Widmann consegue uma mescla da sonoridade característica de sua obra com os arroubos e impactos tão caros ao público de Beethoven. Ele adota uma orquestra do mesmo tamanho e instrumentação da orquestra beethoveniana, traduzindo sem seu próprio idioma musical o andamento mais comum no grande mestre: Con brio!

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(1849) LISZT Concerto para piano n. 1

Compositor: Franz Liszt
Número nos catálogos: LW H-4 / S 124 / R 455 / C 52
Data da composição: temas principais definidos em 1830; forma final em 1849; revisado em 1856
Estréia: 17 de fevereiro de 1855 — Weimar, Liszt ao piano e Hector Berlioz regendo a orquestra

Duração: cerca de 20 minutos
Efetivo: piano solo; 1 flauta-piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tímpanos, triângulo, pratos, e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)

O Primeiro Concerto de Liszt é descendente direto do chamado "Concerto Imperador" de Beethoven no que diz respeito à maneira como o piano-solista se relaciona com a orquestra, com bravura. Aparenta-se com Paganini pelo brilho de super-virtuosismo da parte solo. Mas Liszt propõe, com esta obra, uma maneira totalmente inovadora de Concerto. Ele afasta-se totalmente da forma clássica mozartiana (dos três movimentos) e cria uma espécie de Poema Sinfônico — sua especialidade — ininterrupto tendo o piano como líder a conduzir a narrativa. Afora os efeitos alcançados, moderníssimos para a época, tanto na parte do piano quanto na orquestra. Se pensamos que, mais tardiamente no século XIX, um Brahms e um Tchaikovsky continuaram adotando o esquema clássico vivo-lento-vivo, Liszt fora de tal forma original que seus dois Concertos permanecem como caso único na literatura pianística do Romantismo.

À semelhança de uma Sinfonia, temos 4 movimentos, porém encadeados sem interrupção, como uma grande Fantasia ou Rapsódia, ou ainda — como já dito acima — um Poema Sinfônico. As marcações de andamento são:

I. Allegro maestoso — II. Quasi adagio — III. Allegretto vivace — IV. Allegro marziale animato
(Rápido e majestoso — Quase calmamente — Sem arrastar e vivo — Rápido, marcial e animado)

Já se sente que a "pegada" de Liszt é outra na introdução: ao invés da introdução orquestral tão comum em concertos tradicionais, a fanfarra chama e o piano responde altivo. Os temas — cíclicos, aparecendo ao longo da obra, sem o tradicional esquema de um tema por movimento — são trabalhados com imenso virtuosismo, já que sabemos ter sido ele o pianista mais impressionante do século XIX. A orquestração que envolve — o termo seria este mesmo, envolver; em Concertos tradicionais o piano conversa com a orquestra, neste é envolvido por ela — o solista é luxuriante, originalíssima, caudalosa, cheia de efeitos inusitados (para a época, claro) e grande poder sugestivo.

E na parte do solista, além do encanto das melodias melífluas, e da enorme dificuldade técnica, deixa o espetador absurdado, pois a dificuldade em Liszt é promocional, visualmente impactante — diferente de um Rachamoninov onde o pianista tem de se concentrar em filigranas extenuantes, Liszt tira partido, tendo sido ele o show-man que foi, das dificuldades que podem ser visualmente reconhecidas à distância pela plateia: sequências de acordes que exigem gestos malabarísticos, trinados no agudo nos quais o pianista precisa atacar com ferocidade as notas, escalas em alta velocidade que fazem as mãos voarem pela extensão do teclado. Um pouco circense por um lado, mas com um resultado musical tão impactante e tão poderoso! É o Romantismo em sua plena potencialidade!

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(1913) DEBUSSY Prelúdios, livro II

Préludes pour piano, Deuxième Livre

Compositor: Claude Debussy
Data da composição: fins de 1912 até abril de 1913
Estréia: 5 de abril de 1913 — Paris, pelo pianista Ricard Viñes

Duração: cerca de 40 minutos
Efetivo: piano

No dia 5 de abril de 1913, na Sala da Sociedade de Concertos do Conservatório de Paris, o pianista catalão Ricard Viñes, então uma espécie de pianista oficial de Debussy, apresentou ao público, pela primeira vez, alguns dos Prelúdios do recém-terminado Livro II (há um primeiro livro com 12 Prelúdios, de 1909).

Sucedendo dois importantes conjuntos de Prelúdios na história, o de Bach, para órgão (mas absorvido pelos pianistas para o repertório do instrumento) e os de Chopin, Debussy não se preocupou, como seus antecessores, em criar uma seqüência com coerência calcada na tonalidade das peças. Elas talvez nem tenham sido pensadas para a apresentação como conjunto (embora muitas vezes assim apareçam nos recitais), e sua conexão se dá por meio de uma subjetividade e introspecção comum a todos os trechos. Ao contrário de Bach, que explora a técnica do solista, e Chopin, que mormente exige expressividade e densidade interpretativa, os Prelúdios de Debussy demandam um mergulho profundo por parte do solista nesse universo aquoso, algo devaneador, com divagações que somente expertise técnica e inteligência estética não serão suficientes. Aqui, é preciso rendição da alma.

Por essa razão, decidi oferecer uma descrição mais desprendida de academicismo e fui em busca de um significado mais íntimo, a partir da minha percepção. São 12 prelúdios na seguinte ordem:

1. Brouillards: Modéré, extrêmement égal et léger
(Névoas: Moderado, extremamente constante e leve) — cerca de 3 minutos
Uma peça que exige enorme controle do pianista para conseguir o efeito de bruma enevoada desejado. Um sobrevôo suave por sonhos e desejos, reminiscências de um romance distante, e a bruma que tudo encobre...

2. Feuilles mortes: Lent et mélancolique
(Folhas secas: Lento e melancólico) — cerca de 3 minutos
A atmosfera do outono europeu, folhas secas amareladas e avermelhadas cobrem o chão. É uma clara citação ao trecho "Les sons et les parfums tournement dans l'air du soir" (Os Sons e perfumes no ar da noite) do Primeiro Livro de Prelúdios, de 1909. A atmosfera de sonho continua, porém mais apreensiva.

3. La Puerta del Vino: Mouvement de habanera
(A Porta do Vinho: Movimento de habanera) — cerca de 4 minutos
Este prelúdio traz ao ciclo um colorido espanhol, e a inspiração é à Porta de entrada do Palácio da Alhambra, em Granada. Temos ao fundo a marcação típica de uma habanera, mas por cima o clima de dúvida e apreensão impõe-se, como se tirasse o ouvinte do meramente descritivo e o colocasse como observador de um ponto-de-vista distante.

4. Les fées sont d'exquises danseuses: Rapide et léger
(As fadas são excelentes dançarinas: Rápido e ligeiro) — cerca de 3 minutos
Uma passagem de delicada beleza, leve e ágil. As fadas rodopiam, e graciosamente alçam vôo, tirando os pés do chão. Sua coreografia inclui elipses no ar, voltam a tocar o solo como se nada pesassem.

5. Bruyères: Calme — Doucement expressif
(Brejos: Calmo — Docemente expressivo) — cerca de 3 minutos
A paisagem é inglesa, e o brejo, com suas plantas de umidade e flores rústicas é retratado com melodia pastoral, cujo caráter campestre é lindamente naïve, num trecho de maior franqueza e emoções mais simples.

6. Général Lavine: Eccentric, Dans le style et le mouvement d'un Cake-Walk
(General Lavine: Excêntrico, com o estilo e o movimento de uma Cake-walk) — cerca de 3 minutos
O retrato jocoso e animado do malabarista estadunidense Eduard Lavine, um sucesso da época em apresentações do Teatro do Champs-Élysées. O cake-walk (passo do bolo) com a qual Debussy quer que o intérprete inspire-se é dança originária dos escravos norte-americanos, que nos concursos nos quais se premiava o dançarino com um pedaço de bolo (iguaria rara para os negros naquelas condições), venciam imitando as danças de origem européia com exagero e humor; com o tempo e a libertação dos afro-descebdentes, o cake-walk daria origem ao ragtime.

7. La terrasse des audiences du clair de lune: Lent
(O terraço para assistir à luz do luar: Lento) — cerca de 4 minutos
Inspirada numa canção infantil francesa, "À luz do luar", um trecho de grande complexidade, cheio de subterfúgios, com alterações de ânimo, arroubos suaves difíceis de construir. A luz da lua cheia banha a vista, escondendo medos nas sombras, mudando a cor das coisas, criando uma aura azulada, evocando dúvidas infantis.

8. Ondine: Scherzando
(Ondine: brincando) — cerca de 3 minutos e meio
Inspirado nas figuras do ilustrador inglês Arthur Rackham para o livro "Undine", conto-de-fadas escrito por Friedrich de la Motte Fouqué (com origem na história da Pequena Sereia). A ninfa do Danúbio, Undine, nada desesperada nas águas da incerteza, apaixonada por um mortal, o Cavaleiro Huldebrand, com quem vai se casar para ganhar uma alma humana.

9. Hommage à S. Pickwick, Esq. P.P.M.P.C: Grave
(Homenagem a Pickwick: Gravemente lento) — cerca de 2 minutos e meio
Referência direta ao personagem de Charles Dickens, do livro "The Pickwick Papers" e a sigla quer dizer "President and Permanent Member of the Pickwick Club". A trajetória do Sr. Pickwick e seus três pupilos, que viajam pelo interior da Inglaterra em busca de descobertas científicas e de desvendar o comportamento humano, traz fortes críticas à sociedade vitoriana. Nessa personificação musical do personagem, até mesmo ecos de "God save the Queen" aparecem!

10. Canope: Très calme et doucement triste
(Canopo: Muito calmo de docemente triste) — cerca de 2 minutos e meio
Descrição do Canopo, a urna funerária egípcia em forma de vaso. Um movimento lúgubre, secamente melancólico, quase desesperançoso.

11. Les tierces alternées: Modérément animé
(Terças alternadas: Moderadamente animado) — cerca de 3 minutos
Em forma de Estudo (que antecipa os seus Estudos de 1915), trabalha os intervalos de terça (dois tons inteiros entre duas notas) num crescente animado e vivo, usando pouco material melódico, quase minimalista.

12. Feux d'artifice: Modérément animé
(Fogos-de-artifício: Moderadamente animado) — cerca de 5 minutos
Para encerrar o ciclo, um desafio monumental ao solista: harpejos, acordes salteados, velocidade... tudo com muito brilho e verve. Os fogos-de-artifício estocam no céu, desenham sonhos, iluminam o futuro, exaltam as cores, desmancham-se efêmeros, mas inesquecíveis!

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