(1791) MOZART Réquiem

Requiem

Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Número de catálogo: K 626
Data da composição: de julho a 5 de dezembro de 1791; Süssmayr completa a partitura de dezembro de 1791 a março de 1792
Estréia: 10 de dezembro de 1791, o Introitus e o Kyrie 
Estréia: — Viena, Michaelekirche, cantores e músicos do Theater auf der Wieden
Estréia: 2 de janeiro de 1793, a partitura completada por Süssmayr 
Estréia: — Viena, concerto em benefício da viúva Constanze, organizado pelo Barão Van Swieten

Duração: cerca de 1 hora, a versão mais difundida, de Süssmayr
Duração: cerca de 40 minutos, a versão que retira as adições de Süssmayr e deixa apenas o que Mozart escreveu ou indicou
Efetivo: 4 solistas vocais (soprano, contralto, tenor e baixo);
Efetivo: coro completo (sopranos, contraltos, tenores e baixos);
Efetivo: 2 clarones (= basset-horn ou clarineta-tenor), 2 fagotes, 2 trompetes, 3 trombones, tímpanos, as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixo) e órgão

Em primeiro lugar, esqueçamos a história disseminada pelo excelente filme de Milos Forman, "Amadeus", que coloca o Réquiem como peça central de plano de Salieri para envenenamento de Mozart. Essa é a versão de um texto do autor russo Pushkin, "Mozart e Salieri", de 1830, baseado em fofocas vienenses, que viraria ópera pelas mãos de Rimsky-Korsakov em 1897. Em 1979 o mesmo argumento de enredo foi aos palcos londrinos em "Amadeus", de Peter Shaffer. Essa peça teatral daria origem ao filme de 1984. Tramas hollywoodianas à parte, a antipatia mútua dos dois artistas, Mozart e Salieri, nunca chegou tão longe; eram rivais, claro, uma vez que Salieri ocupava na Corte do Império os cargos que Mozart merecia por talento, mas para os quais fora preterido por seu comportamento irreverente e inadequado. Houvesse qualquer suspeita, a viúva não teria confiado parte da educação de seu filho mais velho, órfão aos seis meses de idade, a Salieri, o rival e colega italiano de seu marido.

O fato é que quanto Mozart morreu, pouco antes da meia-noite de 5 de dezembro de 1791, ele tinha na cama as partes incompletas da partitura que estava o atormentado nos últimos seis meses. Inúmeras pesquisas durante o século XX colaboram para que hoje possamos entender como a coisa aconteceu. A sequência de eventos foi assim:

Em julho de 1791 Mozart recebe um emissário, que sem se identificar, promete uma boa quantia em dinheiro para que ele escrevesse um Réquiem. Esse emissário vinha a Viena a mando do Conde Franz von Walsseg, da Baixa Áustria, músico amador que tinha por hábito comprar partituras de compositores mais talentosos que ele e apresentar a seus convidados no Castelo Stuppach, como se fosse música sua. O excêntrico Conde, então com 28 anos, havia perdido sua esposa de 20 em fevereiro daquele ano. Para as cerimônias fúnebres da jovem e amada mulher, teria que ter um Réquiem para chamar de seu, mas atingido por dolorosa criatividade, queria o Réquiem do melhor compositor do mundo. Essa foi a razão dele querer Mozart.

Sempre em dificuldades financeiras, Mozart a princípio, estranhando as circunstâncias e o mistério em torno da encomenda, quis recusar. Mas, como ele descreve em uma carta a Constanze, era "uma mala de dinheiro". Uma vez aceita a encomenda, Mozart acumula a criação do Réquiem com a tarefa titânica da composição das óperas "A Clemência de Titus" e "A Flauta Mágica", o Concerto para clarineta, dentre outras obras. Prazos impossíveis de cumprir. Em carta à mulher, ele cita a sensação de ter sido envenenado — o que deu origem às inúmeras baboseiras a respeito, além das excelentes obras citadas acima — e o cansaço extremo, fator evidente em alguém com vida desregrada, preocupadíssimo com as dívidas que tinha. 

Mozart passa a ficar obcecado com o Réquiem, chegando a acreditar estar escrevendo a obra para si mesmo. Quando de sua morte, não sabemos se ele já conhecia a autoria da encomenda, mas no dia seguinte à sua morte, Constanze já estava à procura de alguém que fosse capaz de terminar a obra, afinal havia a segunda parte do pagamento, e sua situação agora era muito difícil. A tarefa acabou recaindo sobre Franz Xaver Süßmayr, ex-aluno de Mozart, que a concluiu em março de 1792. A partitura completa foi tocada em benefício da viúva em janeiro de 1793 e entregue ao Conde Walsseg no mesmo ano, em dezembro, que o fez tocar em honra de sua falecida a 14 de dezembro de 1793. O mais lógico é que Constanze sabia da identidade do Conde, o que não sabemos é se ele apresentou a obra como sua.

Com a entrada em cena de Süssmayr, e as tentativas posteriores de complementar ou reduzir sua participação, temos algumas versões do Réquiem:

— A versão de Süsssmayr, completada em 1792, gravada por todos os grandes maestros como Karajan, Bruno Walter e Klemperer, que completa o que foi deixado em esboço, e adiciona partes não escritas fazendo uso de rascunhos e anotações;

— A versão de Sigsmund Keukomm, nascido em Salzburg como Mozart, que em 1819 adicionou as partes finais do Libera Me (inexistentes nos rascunhos de Mozart, portanto não incluídas por Süssmayr). Essa versão foi tocada no Rio de Janeiro, onde este músico viveu, em 1821 nas Festas de Santa Cecília, regida pelo Padre José Maurício Nunes Garcia. Há uma única gravação feita por Jean-Claude Malgoire.

— A partir dos anos-1970, vários pesquisadores começaram a questionar as interferências de Süssmayr, que teria carregado nas tintas em relação à intenção original de Mozart. A partir do estudo da caligrafia, para separar o que fora escrito por Mozart, o pesquisador Franz Beyer propôs uma orquestração mais leve que aquela deixada por Süssmayr. Essa foi a versão gravada por Leonard Bernstein, Neville Marriner e Nikolaus Harnoncourt. E é a versão mais comum hoje em dia.

— O corte mais radical foi feito pelo musicólogo Richard Mauder nos anos-1980, na versão que retira completamente o que foi proposto por Süssmayr e se atém apenas à caligrafia de Mozart. Nessa versão, não existem as partes "Sanctus" e "Benedictus", e o "Lacrimosa" tem a metade do tempo, culminando numa fuga do coro a cappella com a palavra "Amém" que só foi descoberta no século XX. Essa versão foi gravada por Christopher Hogwood.

I. Introitus 
   
Coro e soprano-solo:
Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis.
Te decet hymnus, Deus, in Sion, et tibi reddetur votum in Jerusalem:
exaudi orationem meam, ad te omnis caro veniet.
Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis.

Repouso eterno dá-lhes, Senhor, e luz perpétua os ilumine.
Tu és digno de hinos, ó Deus, em Sião, e a ti rendemos homenagens em Jerusalém:
Ouve a minha oração, diante de Ti toda carne comparecerá.
Repouso eterno dá-lhes, Senhor, E luz perpétua os ilumine.
   
Coro, única passagem em grego ao invés do latim:
Kyrie eleison
Christe eleison
Kyrie eleison

Senhor, tem piedade.
Cristo, tem piedade.
Senhor, tem piedade.

II. Sequentia 

Coro: 
Dies iræ, dies illa, Solvet sæclum in favilla;
Teste David cum Sibylla.
Quantus tremor est futurus, Quando judex est venturus,
Cuncta stricte discussurus!
   
Dia de ira, aquele dia, no qual os séculos se desfarão em cinzas
assim testificam Davi e Sibila.
Quanto temor haverá então, Quando o Juiz vier,
Para julgar com rigor todas as coisas

Quarteto de solistas:
Tuba, mirum spargens sonum, Per sepulchra regionum, 
Coget omnes ante thronum.
Mors stupebit, et natura, Cum resurget creatura,
Judicanti responsura.
Liber scriptus proferetur, In quo totum continetur,
Unde mundus judicetur.
Judex ergo cum sedebit, Quidquid latet, apparebit:
Nil inultum remanebit.
Quid sum miser tunc dicturus?
Quem patronum rogaturus, Cum vix justus sit securus?

A trombeta poderosa espalha seu som, pela região dos sepulcros, 
para juntar a todos diante do trono.
A morte e a natureza se espantarão, com as criaturas que ressurgem,
para responderem ao juízo.
Um livro será trazido, no qual tudo está contido,
pelo qual o mundo será julgado.
Logo que o juiz se assente, tudo o que está oculto, aparecerá:
nada ficará impune.
O que eu, miserável, poderei dizer?
A que patrono recorrerei, quando apenas o justo estará seguro?

Coro:
Rex tremendae majestatis, Qui salvandos salvas gratis,
Salva me, fons pietatis!

Ó Rei, de tremenda majestade, que ao salvar, salva gratuitamente
salva a mim, ó fonte de piedade!

Quarteto de solistas:
Recordare, Jesu pie, Quod sum causa tuæ viæ:
Ne me perdas illa die.
Quærens me, sedisti lassus:
Redemisti Crucem passus:
Tantus labor non sit cassus.

Lembra-te, ó Jesus piedoso, que fui a causa de tua peregrinação,
não me perca naquele dia.
Procurando-me, ficaste exausto
me redimiste morrendo na cruz
que tanto trabalho não seja em vão.

Juste judex ultionis, Donum fac remissionis
Ante diem rationis.

Juiz de justo castigo, 
dá-me o dom da remissão
diante do dia da razão.

Ingemisco, tamquam reus:
Culpa rubet vultus meus:
Supplicanti parce, Deus.

Choro e gemo como um réu,
a culpa enrubesce meu semblante.
A este suplicante poupai, ó Deus.

Qui Mariam absolvisti, Et latronem exaudisti,
Mihi quoque spem dedisti.

Tu, que absolveste Maria, 
e ao ladrão ouviste
a mim também deste esperança.

Preces meæ non sunt dignæ:
Sed tu bonus fac benigne, Ne perenni cremer igne.
Inter oves locum præsta, Et ab hædis me sequestra,
Statuens in parte dextra.

Minhas preces não são dignas, 
Sê bondoso e tende misericórdia,
que eu não queime no fogo eterno.
Dai-me lugar entre as tuas ovelhas, e afastai-me dos bodes,
que eu me assente à tua direita.

Coro:
Confutatis maledictis, Flammis acribus addictis:
Voca me cum benedictis.
Oro supplex et acclinis, Cor contritum quasi cinis:
Gere curam mei finis.

Condenados os malditos, e lançados às chamas devoradoras,
chama-me junto aos benditos
Oro, suplicante e prostrado, o coração contrito, quase em cinzas
tomai conta do meu fim.

[Mozart morreu tendo deixado boa parte da música pronta, faltando partes da orquestração, até o meio do "Lacrimosa", a seguir, onde se pode se sentir uma orquestração mais pesada, característica de Süssmayr]:
   
Coro:
Lacrimosa dies illa, Qua resurget ex favilla.
Judicandus homo reus:
Huic ergo parce, Deus.
Pie Jesu Domine, Dona eis requiem. Amen.

Dia de lágrimas, aquele, No qual, ressurgirá das cinzas,
Um homem para ser julgado;
Portanto, poupe-o, ó Deus.
Ó, misericordioso, Senhor Jesus, Conceda-lhe a paz eterna. Amém.

[Os trechos a seguir são mais da pena de Süssmayr que do próprio Mozart, que deixou apenas idéias em rascunhos incompletos]:

IV. Offertorium

Solistas vocais e quarteto:
Domine Jesu Christe, Rex gloriae, 
Libera animas omnium fidelium defunctorum de poenis inferni et de profundo lacu: 
Libera eas de ore leonis, ne absorbeat eas tartarus, ne cadant in obscurum.
Sed signifer sanctus Michael repraesentet eas in lucem sanctam:
Quam olium Abrahae promisiti et semini ejus.

Senhor Jesus Cristo, Rei da glória, 
Liberta as almas de todos que morreram fiéis das penas do inferno, e do lago profundo: 
Libertai-as da boca do leão, que não sejam absorvidas no inferno, nem caiam na escuridão
Mas que o arcanjo Miguel os conduza à luz santa:
Conforme prometeste a Abraão e sua descendência.

Coro:
Hostias et preces tibi, Domine, laudis offerimus:
Tu suscipe pro animabus illus, quarum hodie memoriam facimus: 
Fac eas, Domine, de morte transire ad vitam, 
Quam olim Abrahae promisti et semini ejus.

Sacrifícios e preces a Ti, Senhor, oferecemos com louvores:
Recebe-os em favor daquelas almas, às quais hoje memória rendemos: 
Fazei-as, Senhor, da morte transcenderem à vida, 
Conforme prometeste a Abraão e sua descendência

[Os trechos a seguir são completamente escritos por Süssmayr]:

V. Sanctus et Benedictus

Coro:
Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth.
Pleni sunt coeli et terra gloria tua
Hosanna in excelsis.

Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos Exércitos.
Cheios estão os céus e a terra da Tua glória
Hosana nas alturas.

Coro e solistas:
Benedictus qui venit, in nomine Domini.
Hosanna in excelsis.

Bendito o que vem, em nome do Senhor
Hosana nas alturas.

[Nos trechos a seguir, Süssmayr volta a contar com os rascunhos de Mozart]:

VI. Agnus Dei

Coro:
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona eis requiem.
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona eis requiem sempiternam.

Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo, dai-lhes repouso.
Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo, dai-lhes o repouso eterno.

VI. Communio

Soprano-solista e coro:
Lux æterna luceat eis, Domine:
Cum Sanctus tuis in aeternum: quia pius es.
Requiem æternam dona eis, Domine: 
Et lux perpetua luceat eis. 
Cum Sanctis tuits in æternum: quia pius es.

Que a luz eterna os ilumine, Senhor:
Com os teus santos na eternidade: pois és piedoso.
Repouso eterno dá-lhes, Senhor: 
E que a luz perpétua os ilumine. 
Com teus santos na eternidade: pois és piedoso.

[Falta o trecho "Libera Me", só existente na versão proposta por Neukomm em 1819 e estreada no Rio de Janeiro em 1821].

A força desta música, ainda com o problema das diferentes versões, é inequívoca. É a mais célebre e bela de todas as Missas dos Mortos. Em 1809, foi tocada nas cerimônias fúnebres de Haydn. Em 1840, nas cerimônias do "Retorno dos Ossos" de Napoleão a Paris. Em 1849 nos funerais de Chopin, segundo desejo expresso em seu testamento, ocasião na qual o Bispo de Paris precisou dar uma licença especial para que o coro feminino pudesse cantar dentro da Madeleine. Em 1964, regido por Leonard Bernstein, nas cerimônias fúnebres do Presidente John Kennedy em Boston. Em 1991, Georg Solti regeu a Filarmônica de Viena na Catedral de Santo Estevão, nas celebrações dos 200 anos da morte de Mozart. Em 1994, Zubin Mehta regeu a obra nas ruínas de Sarajevo, pelo fim do cerco à cidade na Guerra da Bósnia. Em 1999, Claudio Abbado regeu a Filarmônica de Berlim na Catedral de Salzburg, em cerimônia pelos 10 anos da morte de seu antecessor na orquestra, o maestro Herbert von Karajan, salzburguês como Mozart.
  
© RAFAEL FONSECA

2 comentários:

  1. Por favor, 2 perguntas: 1- Qual das versões é a que foi gravada pelo Guilini em 1979? / 2- A versão comentada no post do Karajan é a da gravação de 1962, ou existe outra versões diferentes do mesmo maestro?

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  2. Caro Gonzales, Giulini gravou três vezes o Réquiem, todas com coro e orquestra Philharmonia (de Londres): em 1966, em 1978 (a que você cita, um dos melhores registros já feitos) e em 1989. É provável que as duas últimas ele tenha usado a edição Beyer, mas não consigo te precisar.

    Já o Karajan deixou os seguintes registros:

    — 1960, Filarmônica de Viena, Leontyne Price, Hilde Rössl-Majdan, Fritz Wunderlich, Walter Berry;
    — 1961, Filarmônica de Berlim, Wilma Lipp, Hilde Rössl-Majdan, Anton Dermota, Walter Berry;
    — 1975, Filarmônica de Berlim, Anna Tomowa-Sintow, Agnes Baltsa, Werner Krenn, Jose van Dam;
    — 1986, Filarmônica de Viena, Anna Tomowa-Sintow, Helga Muller Molinari, Vinson Cole, Paata Burchuladze

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