(1824) BEETHOVEN Sinfonia n. 9

Compositor: Ludvig van Beethoven
Número de catálogo: Opus 125
Data da composição: de 1822 a fevereiro de 1824
Estréia: 7 de maio de 1824 em Viena — Theater am Kärntnertor, regência de Michael Umlauf

Duração: cerca de 1 hora e 10 minutos
Efetivo: quarteto solista (soprano, contralto, tenor e baixo);
Efetivo: coro completo a 4 vozes (sopranos, contraltos, tenores e baixos);
Efetivo: 1 flauta-piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 1 contra-fagote, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tímpanos, bumbo, triângulo, pratos, as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

Ao terminar esta obra-prima, Beethoven achava que a vida musical em Viena andava de tal modo frívola — leia-se dominada pela galhardia das óperas de Rossini e que tais — que ele preferia que a platéia de Berlim fosse brindada com a estréia. Seus admiradores, sabendo dessa possibilidade, fizeram correr um abaixo-assinado e coletaram centenas de assinaturas pedindo ao mestre que o público vienense conhecesse sua mais recente criação antes de todos.

Dez anos antes, Michael Umlauf esteve presente nos ensaios para a re-estréia da ópera "Fidelio" e testemunhou o desastre provocado pela surdez de um Beethoven incapaz de ouvir os músicos que dirigia. Ciente disso, e convocado a reger a noite de estréia, avisou aos recrutados para a ocasião que o mestre estaria entre eles, mais precisamente no pódio, mas que ignorassem seu gestual e indicações, a fim de não comprometer o resultado da apresentação.

Na noite de 7 de maio de 1824, o público abarrotou o Teatro da Porta Caríntia — Viena ainda guardava sua murada medieval, e o teatro ficava onde hoje é o Hotel Sacher (atrás da Ópera), ao lado dos portões que davam saída da cidade em direção ao Ducado da Caríntia, hoje a Eslovênia. O respeito e silêncio com que a obra fora ouvida não eram comuns na época, tempo em que os teatros eram o principal ponto-de-encontro da sociedade e o burburinho das conversas, paqueras e complôs concorriam diretamente com o que estava sendo levado no palco. Umlauf conduziu a orquestra, e a voz, pela primeira vez numa Sinfonia, explodiu no movimento final. Terminada a música, o teatro veio abaixo. Urros de satisfação, vivas e bravos. Beethoven, que havia passado a última hora e pouco conduzindo furiosamente o silêncio aterrador de sua alma, ainda gesticulava, atento à partitura, em descompasso com a realidade. Caroline Unger, cantora de 21 anos responsável pelo solo de contralto, percebeu, e puxando Beethoven carinhosamente pelo casaco, colocou-o de frente para a platéia em êxtase. Era este o último triunfo público deste gigante, que morreria 3 anos mais tarde.

Sete anos antes, em 1817, a Sociedade Filarmônica de Londres, que promovia concertos de música instrumental na capital inglesa, encomenda a Beethoven 2 Sinfonias, pelas quais ele recebeu gordo adiantamento. Mas esse final da década de 1810 foi difícil para o compositor, que pouco produziu neste período. Após a morte de seu irmão, ele mergulhou na obsessão de ter a guarda legal do sobrinho Karl, chegando às cortes de justiça para afastá-lo da mãe. Foi somente no começo da década de 1820 que Beethoven voltou a trabalhar em obras de grande porte. E as duas últimas partituras sinfônicas de sua autoria foram gestadas ao mesmo tempo: a Nona Sinfonia — 12 anos após a Oitava! — e a Missa Solene, terminada em 1823 e que estreou um mês antes da Nona em São Petersburgo.

Muitos aspectos fazem da Nona um marco na história da Sinfonia, da música sinfônica, e na história da música em geral. Suas dimensões, densidade, o uso do poema de Schiller no final, tudo era novo naquele tempo. Mas há um elemento que talvez seja o mais importante de todos: o silêncio. Não a falta de som que possa aparecer em alguma pausa da obra, mas o vazio sonoro no qual vivia mergulhado o compositor em seus últimos anos. Livre das limitações que experiência física real proporciona, Beethoven permitiu-se a liberdades que até hoje dão trabalho aos maestros ao ensaiar a obra.

Estruturalmente são 4 movimentos, como qualquer Sinfonia tradicional, mas na prática são 3 prelúdios para um colossal movimento final no qual a voz traz a melodia memorável, que vinha sendo insinuada nos 3 movimentos precedentes. Tudo concorre em direção ao ápice triunfal do coro final, recurso que Beethoven já havia descoberto desde sua Quinta Sinfonia (desbancando a prática da Sinfonia Clássica, na qual a melodia mais nobre era apresentada no primeiro movimento e o restante da obra decorria como mero desdobramento).

Beethoven havia sido, na juventude (idos dos 1790s), aluno de Haydn, o chamado "pai das Sinfonias". Tratava o professor, o músico mais importante de seu tempo, com educada antipatia e recusava-se a colocar "aluno de Haydn" na capa de suas primeiras obras publicadas, como faziam os outros discípulos. Anos mais tarde, em 1808, ao presenciar uma apresentação do Oratório "A Criação" de Haydn, obra coral de grandes proporções que narra a criação (bíblica) do mundo, Beethoven reconheceu a um amigo sua admiração por aquela obra genial. Eu arrisco aqui um palpite: há muito de "A Criação" na Nona Sinfonia. Menos no estilo musical, que o próprio Beethoven o havia superado, e muito. Mas no âmbito simbólico da coisa, e em certos recursos miméticos que Haydn usou, para descrever o caos e o surgimento da luz, por exemplo. A Nona é um descrever da Criação em si, do nada em direção ao sublime. Da sonoridade quase amorfa da primeira frase, ao ideal estético e humano da união fraterna proposta pelo texto de Schiller.

A exposição que faço a seguir aborda alguns pontos relevantes do ponto de vista da construção da Sinfonia, no qual me permito um enfoque absolutamente pessoal e subjetivo.

I. Allegro ma non troppo, un poco maestoso
(Rápido mas não tanto, um pouco majestoso) — de 12 a 18 minutos
Como o nada, algo impalpável: uma sonoridade estranha se impõe. Chega a lembrar, como quem ouve ao longe, aquele som característico antes de cada apresentação, quando os músicos afinam seus instrumentos. Um som débil, que sugere a escuridão e o antes, antes de tudo. Dessa nuvem, surgem os primeiros lampejos, a energia se acumula e explode em trovoadas cada vez mais imponentes. A música domina o ouvinte, mas não há uma melodia para o deleite do ouvido — essa só virá lá adiante no movimento final — e sim um esgar de forças sonoras, um acúmulo de calor, um crescendo de idéias que se aglutinam e distendem, cada vez mais intensamente até chegar a um limite inultrapassável. Mas isso foi só o começo: toda a energia acumulada aqui será liberada no movimento seguinte.

II. Scherzo: Molto vivace — Presto
(Brincadeira, ou jogo: Muito vivaz — Muito rápido) — de 10 a 15 minutos
As faíscas de som que surgiram no início, se formaram e acumularam no movimento anterior, aqui são liberadas de forma contundente. É como uma tempestade de acordes, um genial pulular de notas musicais, a sugestão de um sentimento de urgência, de pressa. É como se, uma vez formado o corpo, agora brincasse nele o espírito.

Um detalhe importante é que, contrariando a posição esperada de um Scherzo, no terceiro movimento das Sinfonias, ele aqui aparece como segundo movimento. Isso tem a ver com a estrutura da obra. Como o último movimento será de longa duração, e dramaticamente mais denso com a presença do coro, Beethoven equilibra a obra colocando esse movimento como segunda parte, do contrário muita agitação recairia sobre a metade final da Sinfonia.

III. Adagio molto e cantabile — Andante moderato – Tempo I – Andante moderato – Adagio
(Sem pressa alguma e cantável — Passo de caminhada moderado — O tempo inicial — Passo de caminhada moderado — Sem pressa) — de 14 a 20 minutos
Como epicentro da obra, no ponto de equilíbrio, uma tocante e singela atmosfera se estabelece. A melodia do finale se antecipa aqui de forma espaçosa, calma e tranqüilizadora. Para acalmar o espírito e o corpo, tão exigidos nos movimentos anteriores, a compaixão entra em cena. Uma sensação de harmonia total domina o ambiente. Quando tudo parece próximo à perfeição, perto do final do movimento, uma advertência se impõe, na forma de violentos e poderosos acordes, com um grito agudo do trompete. É preciso vigilância constante, esse é o aviso. Algo pode desandar. A previsão se concretiza logo a seguir...

IV. Finale: 
(Final) — de 23 a 25 minutos
Presto – Allegro ma non troppo – Vivace – Adagio cantabile – Allegro assai — Presto
(Muito rápido — Rápido mas não tanto — Vivaz — Sem pressa e cantável — Bem rápido — Muito rápido)
O caos sonoro se estabelece. E dele os contra-baixos e violoncelos tentam conduzir a melodia. Mas logo esses instrumentos? Não eram eles relegados à mera função de dar sustentação e base à melodia dos colegas mais agudos? Não serão os homens da base da sociedade, a "voz rouca", a trazer um discurso mais justo? A cada tentativa das cordas mais graves em tentar levar a melodia, os outros instrumentos interrompem, cortam o discurso, acostumados que estão a liderar a conversa. Trava-se uma batalha pela condução da situação. Quase irritados, violinos fazem lembrar aos irmãos mais graves que foram eles quem fizeram nascer a Sinfonia, re-visitando um tema do primeiro movimento. O mesmo farão os oboés com o tema do segundo movimento e as flautas, com o tema do terceiro movimento. Mas os contra-baixos e violoncelos estão determinados. No trecho Adagio cantabile conseguem, finalmente fazer valer seu direito de expor o tema principal da Sinfonia. E logo violas e fagotes são convidados a aderir, e depois os violinos, e logo toda a orquestra estará entoando a melodia em comunhão. É a harmonia, novamente conquistada. Mas, o caos sonoro retorna:

Recitativo: "O Freunde"
(Recitado: "Oh amigos")
O caos. Desordem, violência. Como retornar à paz? Que elementos temos para manter e cultivar a harmonia desejada? A frase a seguir é uma espécie de prelúdio ao texto de Schiller e foi enxertada por Beethoven. Como antes saíram os contra-baixos e violoncelos, agora é voz do cantor baixo (outra vez, a "voz rouca") pedir:

O Freunde, nicht diese Töne! Ó, amigos, não esses sons!
Sondern laßt uns angenehmere Cantemos algo mais agradável
anstimmen und freudenvollere. E mais alegre!
  
Allegro assai – Alla marcia — Andante maestoso — Allegro energico, sempre ben marcato — Prestissimo — Maestoso — Molto prestissimo
(Bem rápido — Em marcha — Em passo de caminhada majestosamente — Rápido e enérgico, sempre bem marcado — Rapidíssimo — Majestoso — Mais que rapidíssimo)

Entra, na voz do baixo repetido pelo coro, o texto de 1785 do poeta Johann Christoph Friedrich von Schiller:

Chor: "An die Freude"
(Coro: "À Alegria")

— Freude! Freude! — Alegria! Alegria!
— Freude, schöner Götterfunken — Alegria, formosa centelha divina,
 Tochter aus Elysium, — Filha do Elíseo (= Paraíso),
 Wir betreten feuertrunken, — Ébrios de fogo entramos
 Himmlische, dein Heiligtum! — Em teu santuário celeste!
 Deine Zauber binden wieder — Tua magia volta a unir
 Was die Mode streng geteilt; — O que o costume rigorosamente dividiu.
 Alle Menschen werden Brüder, — Todos os homens serão irmãos
 Wo dein sanfter Flügel weilt. — Ali onde tuas suaves asas repousam.

Entram agora os demais solistas:

 Wem der große Wurf gelungen, — Quem já conseguiu o grande feito
 Eines Freundes Freund zu sein; — De ser o amigo de um amigo,
 Wer ein holdes Weib errungen, — Quem já conquistou uma nobre mulher
 Mische seinen Jubel ein! — Rejubile-se conosco!
 Ja, wer auch nur eine Seele — Sim, mesmo se alguém conquistar apenas uma alma,
 Sein nennt auf dem Erdenrund! — Uma única em todo o mundo.
 Und wer's nie gekonnt, der stehle — Mas aquele que falhou nisso
 Weinend sich aus diesem Bund! — Que fique chorando sozinho!

 Freude trinken alle Wesen — Alegria, bebem todos os seres
 An den Brüsten der Natur; — No seio da Natureza:
 Alle Guten, alle Bösen — Todos os bons, todos os maus,
 Folgen ihrer Rosenspur. — Seguem seu rastro de rosas.
 Küsse gab sie uns und Reben, — Ela nos deu beijos e vinho e
 Einen Freund, geprüft im Tod; — Um amigo leal até a morte;
 Wollust ward dem Wurm gegeben, — Deu força para a vida aos mais humildes
 Und der Cherub steht vor Gott. — E ao querubim que se ergue diante de Deus!
  
A orquestra marca uma marcha, a princípio meio fúnebre mas que toma logo ares militares — com o uso, pela primeira vez numa Sinfonia, do triângulo e dos pratos — fazendo lembrar que deve-se batalhar para manter-se a ordem (era época de re-organização da Europa após as invasões de Napoleão). Vem o tenor com o coro, no ritmo da marcha precedente:

 Froh, wie seine Sonnen fliegen  Alegremente, como sóis que voam
 Durch des Himmels prächt'gen Plan,  Através do esplêndido espaço celeste
 Laufet, Brüder, eure Bahn,  Se expressem, irmãos, em seus caminhos,
 Freudig, wie ein Held zum Siegen.  Alegremente como o herói diante da vitória.

A orquestra faz novamente um interlúdio de imensa força, para culminar num chamado do trompete que anuncia a explosão do coro, a realização majestosa da melodia principal da obra:

— Freude, schöner Götterfunken — Alegria, formosa centelha divina,
 Tochter aus Elysium, — Filha do Elíseo,
 Wir betreten feuertrunken, — Ébrios de fogo entramos
 Himmlische, dein Heiligtum! — Em teu santuário celeste!
 Deine Zauber binden wieder — Tua magia volta a unir
 Was die Mode streng geteilt; — O que o costume rigorosamente dividiu.
 Alle Menschen werden Brüder, — Todos os homens serão irmãos
 Wo dein sanfter Flügel weilt. — Ali onde tuas suaves asas repousam.

 Seid umschlungen, Millionen!  Abracem-se milhões!
 Diesen Kuß der ganzen Welt!  Este beijo é para todo o mundo!
 Brüder, über'm Sternenzelt  Irmãos, além do céu estrelado
 Muß ein lieber Vater wohnen.  Deve morar um Pai Amado.
 Ihr stürzt nieder, Millionen?  Milhões, vocês estão ajoelhados diante Dele?
 Ahnest du den Schöpfer, Welt?  Mundo, você percebe seu Criador?
 Such' ihn über'm Sternenzelt!  Procure-o mais acima do Céu estrelado!
 Über Sternen muß er wohnen.  Sobre as estrelas onde Ele mora!

O quarteto solista retoma o refrão, com o coro finalizando o verso em júbilo, e o quarteto finalizando a repetição e o coro finalizando a obra num êxtase catártico:

— Freude, schöner Götterfunken — Alegria, formosa centelha divina,
 Tochter aus Elysium, — Filha do Elíseo,
 Wir betreten feuertrunken, — Ébrios de fogo entramos
 Himmlische, dein Heiligtum! — Em teu santuário celeste!
 Deine Zauber binden wieder — Tua magia volta a unir
 Was die Mode streng geteilt; — O que o costume rigorosamente dividiu.
 Alle Menschen werden Brüder, — Todos os homens serão irmãos
 Wo dein sanfter Flügel weilt. — Ali onde tuas suaves asas repousam.


A partir de duas traduções: a obtida na Wikipedia;
e a de Amancio Cueto Junior em Euterpe.
  
© RAFAEL FONSECA