(1804) BEETHOVEN Sinfonia n. 3 "Heróica"

Sinfonia Grande Intitolata Bonaparte (na primeira dedicatória)
Sinfonia Eroica, per festeggiare il sovvenire di un grand Uomo (na primeira edição)

Compositor: Ludwig van Beethoven
Número de catálogo: Opus 55
Data da composição: 1802 até agosto de 1804
Estréia: 7 de abril de 1805 — Palácio Lobkowitz, Viena, 28 músicos contratados para a ocasião sob regência do autor

Duração aproximada: de 45 a 59 minutos
Efetivo: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetas, 2 fagotes, 3 trompas, 2 trompetes, tímpano, cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

Beethoven estava com 32 anos quando iniciou o projeto de escrever uma grande Sinfonia — a mais longa e grandiloquente jamais pensada, até então — homenageando Napoleão Bonaparte. Sua motivação era estritamente pessoal: admirava Napoleão como o grande homem, que de mero cabo — “um ninguém” — chegou a comandar uma das maiores nações do mundo pela simples força de seu caráter e genialidade. Via no general e depois Cônsul, como num espelho, a própria figura transformadora. É a admiração ao Napoleão libertário, revolucionário, que lança Beethoven (ele mesmo fruto da geração pós Revolução Francesa) numa busca estética que extrapolava em muito os limites da harmonia respeitosa de Haydn ou jocosa de Mozart. Beethoven foi a antena da raça e catalisou todas as transformações de seu tempo. A “Eroica” é o símbolo dessa virada, e a obra que se coloca como divisor de águas entre o Classicismo (império da razão e da beleza) e o Romantismo (era da emoção e do sentimento).

I. Allegro con brio
(Rápido e com brio) — cerca de 14 a 20 minutos
Dois acordes contundentes, diretos, surpreendem o ouvinte. Talvez não o ouvinte de hoje, mas certamente aquele do início do século XIX, acostumado à polidez e cordialidade das Sinfonias de Haydn, que nunca começavam sem antes apresentar uma introdução suave e convidativa. Beethoven, que havia sido aluno de Haydn, rejeita aqui a introdução. Em sua Sinfonia anterior, a segunda, tal introdução já era bastante contestadora. Mas agora configurava-se um corte, aqueles dois acordes feriram a linha do tempo na história da música e deixaram para trás toda uma era. É a última Sinfonia do Classicismo, e a primeira do Romantismo.

Consciente da inovação, após o susto do início tão abrupto, o ouvinte é convidado a confrontar outra novidade: violoncelos desenham o tema. Estou falando dos primeiros minutos da coisa. Não era de se esperar? Não, não era. Violoncelos serviam para dar base e sustentação aos temas, eram instrumentos de mero acompanhamento. (Anos mais tarde, na Nona, violoncelos e contra-baixos chegariam ao apogeu ao dar vida ao tema principal no finale daquela obra). E seguem-se mais 16, 17 ou 18 minutos de música, até findar-se o primeiro movimento. Isso, por si só, já quase supera a duração de uma Sinfonia inteira de Haydn ou Mozart, os modelos daquela geração.

II. Marcia funebre: Adagio assai
(Marcha fúnebre: Bastante lento) — cerca de 13 a 19 minutos
O segundo movimento da Sinfonia traz a chave para a compreensão dessa exacerbação do sentir: um Adagio de enorme profundidade, numa densidade poucas vezes vista em música. Muitos acreditaram ser essa Marcha Fúnebre a reprovação posterior de Beethoven ao homenageado, quando este tornou-se Imperador dos franceses — mas, na verdade, quando o compositor soube que seu herói travestira-se de tirano, a Sinfonia já estava pronta. Sua fúria está fisicamente presente num dos originais manuscritos: onde se lia “Sinfonia Bonaparte” ficou apenas um buraco, tal a força com que se tentou apagar o nome do papel. Ficou a ideia do heroísmo, que embora Napoleão corrompera com a coroa, sua mensagem estava dada. Tanto que o título posterior foi “para festejar a memória de um Grande Homem”. É poético crer que a Marcha sepulta o Napoleão herói, mas na verdade seus planos poderiam ser de sepultar o próprio Ancient Régime.
 
III. Scherzo: Allegro vivace
(Scherzo: Rápido com vivacidade) — cerca de 4 a 7 minutos
O Scherzo confirma que o modus vivendi da geração passada já não era mais possível. No lugar do cordial e quase frívolo Minuetto das Sinfonias de Haydn — que ele tentou ainda reproduzir, sem a menor elegância, mas com toda fúria, em sua Primeira Sinfonia — temos um agitado e irônico terceiro movimento, que fez o próprio Haydn declarar: — “Não sei se gosto, ou não... mas de fato, a partir daqui a Música mudou para sempre”.
   
IV. Finale: Allegro molto
(Final: Bem rápido) — cerca de 11 a 14 minutos
O finale é, outra vez, longo para os padrões da época, tendo cerca de 18 minutos como o primeiro movimento. Ele é o único que não aparece nos primeiros esboços de 1802, talvez porque Beethoven já intencionava utilizar um tema de obra anterior, o balé “As Criaturas de Prometeus”. O mesmo tema do fogo — simbolizando o conhecimento — foi trabalhado numa série de Variações para piano, hoje conhecidas como Variações “Eroica” mas imediatamente anterior à Sinfonia. E é este tema que aparece no final tratado com grande riqueza, também utilizando-se do expediente das variações, fazendo talvez a conexão entre o conhecimento e a liberdade, que aquele herói, fosse Napoleão ou qualquer outro, poderia levar a seus irmãos e compatriotas.

A Sinfonia, que antes durava pouco menos que meia hora e era a simples elevação da estética da organização harmônica entre os sons, em busca da beleza, agora precisava de mais tempo para concluir seu discurso: cerca de 50 minutos (dizem que Beethoven regia a “Eroica” em quase 1 hora). O segundo movimento, outrora uma página bela e cheia de lirismo, agora traduzia-se numa contundente Marcha fúnebre. O Minuetto, a dança da corte à francesa, perdia lugar para um Scherzo vigoroso e contestador. A própria essência não seria mais a mesma: Sinfonia que não era mais apenas notas bem combinadas, tratava-se de dar voz a uma filosofia, um ideal social, à admiração a um homem que não morre: o herói dentro de cada um que luta por um mundo melhor.

© RAFAEL FONSECA