Rafael Fonseca | Guia dos Clássicos
Olga Peretyatko
Olga Aleksandrovna Peretjatko — transliteração de Ольга Александровна Перетятько
São Petersburgo, 21 de maio de 1980
Registro vocal: soprano coloratura
São Petersburgo, 21 de maio de 1980
Registro vocal: soprano coloratura
Começou a carreira ainda menina, cantando no coro infantil do Teatro Mariinsky (na época, Kirov) de sua cidade natal. Seus estudos foram na Escola Hans Eisler em Berlim e depois fez seu aperfeiçoamento no Opernstudio da Ópera de Hamburgo. Desde 2006 ela faz parte do elenco de solistas da Accademia Rossiniana da cidade de Pesaro, onde Rossini nasceu. Em 2007 ela fica em segundo lugar no Concurso Operalia, promovido por Plácido Domingo em Paris. Em 2010 a consagração internacional no papel-título da ópera "O Rouxinol" de Stravinsky, no Festival de Aix-en-Provence. Em 2015, com aclamação da crítica, cantou a protagonista de "La Traviata" no Festival de Baden-Baden. Vem despontando com uma das grandes vozes do cenário internacional.
© RAFAEL FONSECA
Felix Klieser
Felix Klieser
Göttingen, Alemanha, 3 de janeiro de 1991
Göttingen, Alemanha, 3 de janeiro de 1991
— "Infelizmente, eu não fui abençoado com as habilidades naturais, e talvez eu tenha escolhido a trompa porque pensei que, se conseguisse superar as dificuldades de tocá-la, eu poderia superar qualquer coisa". Felix nasceu sem os braços, e aos 4 anos demonstrou vontade de tocar trompa. Ele manipula as válvulas do instrumento com os dedos de seu pé direito, tendo à frente um suporte desenvolvido especialmente para ele por um construtor de instrumentos. Mas ainda lhe faltava um recurso: os trompistas usam a técnica de abafamento e busca de semitons inserindo a mão esquerda na campânula e ele não pode fazer isso. Então ele criou uma técnica especial de sopro com a qual consegue boa parte dos efeitos, apenas com a mudança de embocadura.
Com 17 anos entrou para a Hochschule für Musik und Theater de Hannover. De 2008 a 2011 foi membro da Orquestra Jovem Nacional da Alemanha. Em 2014 vemceu o "Jugend Musiziert" e foi escolhido artista revelação do importante Echo Klassik (o Oscar da música clássica). Em 2016, ganhou o prêmio "Leonard Bernstein" do Schleswig-Holstein Musik Festival. Felix está cotado como o melhor trompista de sua geração.
© RAFAEL FONSECA
(1787) MOZART Concerto para trompa n. 3
Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Número de catálogo: K. 447
Data da composição: 1787
Estréia: [?]
Duração: cerca de 16 minutos
Efetivo: a trompa solista; 2 clarinetas, 2 fagotes e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)
I. Allegro (Rápido) — cerca de 7 minutos
II. Romance: Larghetto (Romance: Sem arrastar) — cerca de 5 minutos
III. Allegro (Rápido) — cerca de 4 minutos
Número de catálogo: K. 447
Data da composição: 1787
Estréia: [?]
Duração: cerca de 16 minutos
Efetivo: a trompa solista; 2 clarinetas, 2 fagotes e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)
Mozart foi amigo íntimo, por toda a vida, do trompista Joseph Leutgeb, que havia sido membro da orquestra da Corte no Arcebispado de Salzburg e que mais tarde (1777) mudou-se para Viena para abrir uma loja de queijos (com a ajuda do pai de Mozart, Leopold). Assim como os outros concertos para este instrumento, este foi dedicado ao amigo. São 3 movimentos:
I. Allegro (Rápido) — cerca de 7 minutos
II. Romance: Larghetto (Romance: Sem arrastar) — cerca de 5 minutos
III. Allegro (Rápido) — cerca de 4 minutos
A trompa disponível naqueles dias era a chamada "trompa natural", que ainda não dispunha de válvulas, recurso que só viria a aparecer em 1818. No conjunto de 4 Concertos que Mozart dedicou ao trompista Leutgeb, este é o mais elaborado deles, e sua instrumentação também é curiosa: junto às cordas, somente clarinetas e fagotes.
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(1772) MOZART Sinfonia n. 20
Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Número de catálogo: K. 133
Data da composição: julho de 1772
Estréia: [?]
Duração: cerca de 20 minutos
Efetivo: 1 flauta, 2 oboés, 2 trompas, 2 trompetes e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)
Número de catálogo: K. 133
Data da composição: julho de 1772
Estréia: [?]
Duração: cerca de 20 minutos
Efetivo: 1 flauta, 2 oboés, 2 trompas, 2 trompetes e as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos)
Quando Mozart escreveu esta Sinfonia, ele estava com 16 anos de idade. Um ano antes, tinha feito uma longa viagem à Itália, indo a Milão, Mântua, Roma e Nápoles. Em Roma, ele havia experimentado, pela primeira vez, a introdução de um Minueto (típico da Sinfonia haydniana austríaca) na estrutura da Sinfonia italiana (que tinha, por tradição, 3 movimentos), nas Sinfonias ns. 10 e 11. De volta a Salzburg, influenciado pela musicalidade da terra da ópera, ele se coloca em um novo patamar de maturidade artística. São 4 movimentos:
I. [Allegro] (Rápido) — cerca de 7 minutos
II. Andante (Confortavelmente) — cerca de 6 minutos
III. Minueto (Passo miúdo) — cerca de 3 minutos
IV. [Allegro] (Rápido) — cerca de 5 minutos
— Nos primeiro e último movimentos, Mozart não determinou o andamento, a adoção do Allegro é por suposição de que, naturalmente, esses eram os tempi usuais
Quando escreve esta Sinfonia de n. 20, ele utiliza um par de trompetes (em adição às já habituais trompas), para criar um efeito de fanfarra em várias passagens, sobretudo no primeiro movimento. Uma presença notável é a adição de uma flauta — instrumento pelo qual Mozart não tinha lá muita simpatia — que se ouve somente no segundo movimento. O minueto tem atmosfera pastoril e o finale é de grande inventividade.
© RAFAEL FONSECA
Teatro do Jogo de Palma
Théâtre du Jeu de Paume
493 lugares
Inauguração: 1787
Local: 21 Rue de l'Opéra, Aix-en-Provence, França
Projeto: Marquis de la Barben
493 lugares
Inauguração: 1787
Local: 21 Rue de l'Opéra, Aix-en-Provence, França
Projeto: Marquis de la Barben
O teatro foi construído no local onde havia um "Jeu de Paume" (Jogo de Palma), tipo de precursor do Tênis, esporte favorito da nobreza desde os tempos do Rei Luís XIV. A construção começou em 1756 e a inauguração aconteceu em 1787. O projeto foi do próprio Marquês de La Barben, o então administrador regional e Cônsul da cidade de Aix. Disponde de um terreno de dimensões apertadas (36x16 metros), ele consegue planejar um teatro com as características da época: de todos os lugares teria de ser possível ouvir atores ou cantores. Como o orçamento extrapolou em muito a dotação prevista, o teatro foi inaugurado em 1787 sem muita decoração interna, e seus adornos foram sendo acrescentados aos poucos em sucessivas intervenções feitas até 1829.
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Peter Serkin
Peter Adolf Serkin
Nova York, 24 de julho de 1947
Nova York, 24 de julho de 1947
Filho do lendário pianista Rudolf Serkin e neto do não menos lendário violinista Adolf Busch (precursor nas gravações para o gramofone da obra de Bach), Peter entrou para o Curtis Institute of Music em 1958 com 11 anos de idade. Talento muito precoce, viu sua carreira começar logo no ano seguinte, 1959, com 12 anos: estreou no Festival de Marlboro — festival fundado por seu pai e seu avô, que tinham migrado na década de 1940 para os Estados Unidos, fugidos do nazismo. Serkin pai era tcheco de família de judeus russos. Busch (avô) não era judeu mas saiu da Alemanha em solidariedade ao genro, e por se opor às políticas persecutórias. Com 19 anos, ganhou em 1966 seu primeiro Grammy por uma gravação dos Concertos de Mozart (território no qual o pai era um luminar).
Em 1968, com a perspectiva da paternidade — e, certamente, por ter experimentado uma infância distante do pai artista — decide parar de tocar e muda-se com a esposa e a filha ainda bebê para uma cidadezinha rural no México. Até que um dia, em 1971, ouve, do rádio de uma casa próxima, música de Bach: era o sinal claro de que sua vida era música. Voltou aos Estados Unidos e retomou a carreira.
Com um repertório super abrangente, desde Bach (do qual já gravou as Variações Goldberg 4 vezes) até os contemporâneos, ele tem um toque elegantíssimo, com um fraseado lírico tão natural e espontâneo.
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(1788) MOZART Adagio para piano, K. 540
Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Número de catálogo: K 540
Data da composição: 19 de março de 1788
Estréia: [?]
Duração: de 7 a 14 minutos, dependendo se o intérprete faz ou não a repetição sugerida na partitura
Efetivo: piano
Número de catálogo: K 540
Data da composição: 19 de março de 1788
Estréia: [?]
Duração: de 7 a 14 minutos, dependendo se o intérprete faz ou não a repetição sugerida na partitura
Efetivo: piano
Uma peça curta, para piano, na qual Mozart investe tanta densidade que, ela poderia, facilmente, enganar o ouvinte como uma peça de Beethoven ou até de um Romântico tardio. Apesar de contrastar fortemente com a maioria das composições daquele ano de 1788 — o auge do Classicismo —, podemos fazer uma ligação direta dessa atmosfera mais profunda com as 3 Sinfonias, suas últimas, que ele escreveria poucos meses depois: assim como aquelas obras, este Adagio é como um certo prenúncio do que estava por vir, das transformações que Mozart, se tivesse sobrevivido à morte prematura, teria promovido junto ao semeador do Romantismo musical, o jovem Beethoven. Aliás, fica a dúvida... Se Mozart tivesse ultrapassado seus 36 anos de idade, qual seria seu papel nos anos de virada para o século XIX, como isso teria impactado — ou, até mesmo atrapalhado — o inquieto Beethoven? Mistérios para a reflexão que este pequeno Adagio pode incitar...
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(1727) BACH Paixão segundo Mateus
Matthäuspassion
Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Evangelistam Matthaeum
Compositor: Johann Sebastian Bach
Número de catálogo: BWV 244
Data da composição: 1727, com revisões em 1736, 1742 e 1743
Estréia: 11 de abril de 1727 na Thomaskirche (Igreja de São Tomás, Leipzig) — direção do autor
Duração: cerca de 3 horas
Efetivo: vozes solistas (2 sopranos, 1 contralto, 1 tenor, 2 baixos);
Efetivo: 2 coros completos (sopranos, contraltos, tenores e baixos);
Efetivo: 2 orquestras, tendo, cada uma: 2 flautas, 2 oboés, 1 oboé d'amore, 1 oboé da caccia, as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos), e baixo-contínuo (órgão e/ou cravo, viola da gamba)
O vídeo abaixo traz legendas em português para a compreensão da narrativa:
Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Evangelistam Matthaeum
Compositor: Johann Sebastian Bach
Número de catálogo: BWV 244
Data da composição: 1727, com revisões em 1736, 1742 e 1743
Estréia: 11 de abril de 1727 na Thomaskirche (Igreja de São Tomás, Leipzig) — direção do autor
Duração: cerca de 3 horas
Efetivo: vozes solistas (2 sopranos, 1 contralto, 1 tenor, 2 baixos);
Efetivo: 2 coros completos (sopranos, contraltos, tenores e baixos);
Efetivo: 2 orquestras, tendo, cada uma: 2 flautas, 2 oboés, 1 oboé d'amore, 1 oboé da caccia, as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos), e baixo-contínuo (órgão e/ou cravo, viola da gamba)
Não se sabe a data exata da composição da Paixão segundo Mateus, mas tudo leva a crer que Bach a escreveu no início de 1727 para as celebrações da Sexta-feira santa daquele ano, que caiu num dia 11 de abril, na Igreja de São Tomás, a Thomaskirche, em Leipzig, cidade na qual ele desempenhava a função de Kantor (algo como um secretário municipal da música). Ele voltaria à partitura em 1736 promovendo pequenas revisões, acrescendo o órgão ao baixo-contínuo, para nova apresentação. Depois disso, silêncio. Por um século, essa obra genial estaria encoberta pelo silêncio.
A obra usa os capítulos 26 e 27 do Evangelho de Mateus, entremeados a corais e árias com libreto organizado pelo poeta Christian Friedrich Henrici, mais conhecido como Picander. Por isso, depois do Coral de abertura, o tenor que conduz a ação como o Evangelista já começa seu recitativo dizendo "Da Jesus diese Rede vollendet hatte..." (Quando Jesus terminou estas palavras...), porque a Paixão de Bach pega, literalmente, o bonde andando: é provável que a Paixão fosse apresentada à congregação de fiéis na sequência das leituras da bíblia luterana, daí um início tão abrupto, Jesus terminando de dizer palavras que no texto cantado não apareceram.
Cada recitativo do Evangelista Mateus é acompanhado do baixo-contínuo, como a tradição exige. Poderá ser somente o cravo, ou o órgão. Mas cada vez que Jesus fala — e temos esse contraste logo no segundo recitativo da obra — a sua voz é acompanhada de um "halo musical" das cordas, ou seja, sua voz é protegida por essa moldura especial. Num dos momentos cruciais da Paixão, e essa será sua última fala/recitativo, esse "halo" desaparece e a voz de Jesus é acompanhada "a seco", com o baixo-contínuo comum: é no momento em que ele pergunta, na única frase que não é dita em alemão: "Eli, Eli, lama asabthani?"; que logo o Evangelista nos traduz (para o alemão, claro): "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?".
Esses recitativos de Mateus vão costurando a narrativa, contando a história, e a cada momento se soma uma ária ou coral. Há muito de linguagem cifrada na partitura, coisas que só os músicos vêem. Por exemplo, quando a palavra cálice é cantada, Bach sempre dispõe as notas da melodia de maneira que se desenhe na pauta um cálice inclinado. E há também mimetismos sutis: quando a soprano canta em "Blute nur, du liebes Herz!" (Sangra, querido coração) a ação da serpente (Schlange) na ária que fala da traição de Judas, a música da frase "sepenteia" a palavra. Ou em "Buß und Reu" (Contrição e arrependimento) o tocar staccato das flautas sugerem os pingos das lágrimas que o texto explicita.
Bach se permite, até, a um recurso inimaginável no século XVIII: quando Pilatus oferece à multidão a escolha entre Jesus e Barrabás para a obtenção do perdão, o grito aterrador da multidão escolhendo Barrabás, numa dissonância agressiva, é de efeito chocante.
Muitos dos Corais presentes na obra são da tradição local, alguns remontando ao século XVI. É que, no serviço religioso luterano, temos Coros e Corais (Chor und Chorale), o primeiro é cantado pelo coro oficial, aquele que está lá em cima, regido pelo mestre-de-coro, e o segundo é cantado por toda a congregação: estes são mais espaçosos, sílabas mais escandidas, e geralmente já conhecidos do "público".
A arquitetura da Igreja de São Tomas foi determinante na maneira como Bach pensou a obra. Ele já havia escrito e tocado lá a Paixão segundo João, em 1724. Depois apresentou outra Paixão, segundo Marcos, que não era música sua, mas que certamente enriqueceu a experiência de experimentar a música no espaço acústico da nave daquela igreja. Sem os adornos histéricos das igrejas católicas, as naves pouco adornadas das igrejas protestantes eram perfeitas para a reverberação do som. Quando Bach planejou a Paixão segundo Mateus, a Igreja de São Tomás contava com duas galerias e um órgão e um balcão de coro em cada uma. (Isso mudou um pouco com uma reforma feita em 1732). Então ele colocou duas orquestras completas e dois coros completos em cada um dos espaços. Assim, o sujeito que esteve sentado lá numa das 3 apresentações que Bach regeu ali em vida, tinha música vindo de cima, dos dois lados do prédio! A função da formação dupla era também dramática: uma das orquestras emprestava suas cordas ao halo dos recitativos de Jesus; os coros se intercomunicam, ora um deles representando os discípulos, outro a turba enfurecida, ora um coro acusatório, outro chorando as agruras do principal personagem.
Consideradas as proporções desses balcões e as dimensões das orquestras da época, podemos imaginar uns 50 integrantes no total, 20 a 25 de cada lado, entre solistas vocais, coristas e instrumentistas. Exageros da era moderna, como 400 vozes do Coro do Tabernáculo Mórmon de Salt Lake City, iluminados com holofotes roxos e azuis-turquesa, são cafonices de norte-americano.
Como já fiz referência no primeiro parágrafo deste texto, após a re-apresentação de 1736, a obra foi recoberta pelo silêncio. Apenas alguns fiéis presentes na cidade de Leipzig, por três vezes, puderam ouvir essa obra magnífica. Depois, silêncio. Por um século. Foi preciso passar exatos 93 anos da última apresentação. Exatos 79 anos da morte de Bach. Até que uma senhora berlinense, Bella Solomon (que, posteriormente adotaria o sobrenome Bartholdy), deu ao neto de 15 anos, uma cópia manuscrita da partitura da Paixão de Bach. Esse presente mudou a vida do jovem músico. Poucos anos mais tarde, em 1829, na mesma Berlim, esse jovem organizaria um concerto e apresentaria a monumental Paixão segundo Mateus, e com isso provocaria um crescente interesse do público pela obra de um compositor que estava confinado ao estudo dos aspirantes a compositores. O nome desse jovem? Felix Mendelssohn. Assim como os avós, seus pais adotaram o sobrenome Bartholdy (de uma propriedade da família) para amenizar as evidentes raízes judaicas após a conversão deles ao protestantismo. Mas Mendelssohn nunca deixou de se orgulhar de ter feito renascer no repertório esta obra definitiva. E brincava: — "E pensar que coube a um judeu restaurar a maior obra musical da cristandade!". A Paixão é isso, e mais que isso: é a maior obra musical da humanidade.
A obra usa os capítulos 26 e 27 do Evangelho de Mateus, entremeados a corais e árias com libreto organizado pelo poeta Christian Friedrich Henrici, mais conhecido como Picander. Por isso, depois do Coral de abertura, o tenor que conduz a ação como o Evangelista já começa seu recitativo dizendo "Da Jesus diese Rede vollendet hatte..." (Quando Jesus terminou estas palavras...), porque a Paixão de Bach pega, literalmente, o bonde andando: é provável que a Paixão fosse apresentada à congregação de fiéis na sequência das leituras da bíblia luterana, daí um início tão abrupto, Jesus terminando de dizer palavras que no texto cantado não apareceram.
Cada recitativo do Evangelista Mateus é acompanhado do baixo-contínuo, como a tradição exige. Poderá ser somente o cravo, ou o órgão. Mas cada vez que Jesus fala — e temos esse contraste logo no segundo recitativo da obra — a sua voz é acompanhada de um "halo musical" das cordas, ou seja, sua voz é protegida por essa moldura especial. Num dos momentos cruciais da Paixão, e essa será sua última fala/recitativo, esse "halo" desaparece e a voz de Jesus é acompanhada "a seco", com o baixo-contínuo comum: é no momento em que ele pergunta, na única frase que não é dita em alemão: "Eli, Eli, lama asabthani?"; que logo o Evangelista nos traduz (para o alemão, claro): "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?".
Esses recitativos de Mateus vão costurando a narrativa, contando a história, e a cada momento se soma uma ária ou coral. Há muito de linguagem cifrada na partitura, coisas que só os músicos vêem. Por exemplo, quando a palavra cálice é cantada, Bach sempre dispõe as notas da melodia de maneira que se desenhe na pauta um cálice inclinado. E há também mimetismos sutis: quando a soprano canta em "Blute nur, du liebes Herz!" (Sangra, querido coração) a ação da serpente (Schlange) na ária que fala da traição de Judas, a música da frase "sepenteia" a palavra. Ou em "Buß und Reu" (Contrição e arrependimento) o tocar staccato das flautas sugerem os pingos das lágrimas que o texto explicita.
Bach se permite, até, a um recurso inimaginável no século XVIII: quando Pilatus oferece à multidão a escolha entre Jesus e Barrabás para a obtenção do perdão, o grito aterrador da multidão escolhendo Barrabás, numa dissonância agressiva, é de efeito chocante.
Muitos dos Corais presentes na obra são da tradição local, alguns remontando ao século XVI. É que, no serviço religioso luterano, temos Coros e Corais (Chor und Chorale), o primeiro é cantado pelo coro oficial, aquele que está lá em cima, regido pelo mestre-de-coro, e o segundo é cantado por toda a congregação: estes são mais espaçosos, sílabas mais escandidas, e geralmente já conhecidos do "público".
A arquitetura da Igreja de São Tomas foi determinante na maneira como Bach pensou a obra. Ele já havia escrito e tocado lá a Paixão segundo João, em 1724. Depois apresentou outra Paixão, segundo Marcos, que não era música sua, mas que certamente enriqueceu a experiência de experimentar a música no espaço acústico da nave daquela igreja. Sem os adornos histéricos das igrejas católicas, as naves pouco adornadas das igrejas protestantes eram perfeitas para a reverberação do som. Quando Bach planejou a Paixão segundo Mateus, a Igreja de São Tomás contava com duas galerias e um órgão e um balcão de coro em cada uma. (Isso mudou um pouco com uma reforma feita em 1732). Então ele colocou duas orquestras completas e dois coros completos em cada um dos espaços. Assim, o sujeito que esteve sentado lá numa das 3 apresentações que Bach regeu ali em vida, tinha música vindo de cima, dos dois lados do prédio! A função da formação dupla era também dramática: uma das orquestras emprestava suas cordas ao halo dos recitativos de Jesus; os coros se intercomunicam, ora um deles representando os discípulos, outro a turba enfurecida, ora um coro acusatório, outro chorando as agruras do principal personagem.
Consideradas as proporções desses balcões e as dimensões das orquestras da época, podemos imaginar uns 50 integrantes no total, 20 a 25 de cada lado, entre solistas vocais, coristas e instrumentistas. Exageros da era moderna, como 400 vozes do Coro do Tabernáculo Mórmon de Salt Lake City, iluminados com holofotes roxos e azuis-turquesa, são cafonices de norte-americano.
Como já fiz referência no primeiro parágrafo deste texto, após a re-apresentação de 1736, a obra foi recoberta pelo silêncio. Apenas alguns fiéis presentes na cidade de Leipzig, por três vezes, puderam ouvir essa obra magnífica. Depois, silêncio. Por um século. Foi preciso passar exatos 93 anos da última apresentação. Exatos 79 anos da morte de Bach. Até que uma senhora berlinense, Bella Solomon (que, posteriormente adotaria o sobrenome Bartholdy), deu ao neto de 15 anos, uma cópia manuscrita da partitura da Paixão de Bach. Esse presente mudou a vida do jovem músico. Poucos anos mais tarde, em 1829, na mesma Berlim, esse jovem organizaria um concerto e apresentaria a monumental Paixão segundo Mateus, e com isso provocaria um crescente interesse do público pela obra de um compositor que estava confinado ao estudo dos aspirantes a compositores. O nome desse jovem? Felix Mendelssohn. Assim como os avós, seus pais adotaram o sobrenome Bartholdy (de uma propriedade da família) para amenizar as evidentes raízes judaicas após a conversão deles ao protestantismo. Mas Mendelssohn nunca deixou de se orgulhar de ter feito renascer no repertório esta obra definitiva. E brincava: — "E pensar que coube a um judeu restaurar a maior obra musical da cristandade!". A Paixão é isso, e mais que isso: é a maior obra musical da humanidade.
© RAFAEL FONSECA
O vídeo abaixo traz legendas em português para a compreensão da narrativa:
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