(1727) BACH Paixão segundo Mateus

Matthäuspassion
Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Evangelistam Matthaeum

Compositor: Johann Sebastian Bach
Número de catálogo: BWV 244
Data da composição: 1727, com revisões em 1736, 1742 e 1743
Estréia: 11 de abril de 1727 na Thomaskirche (Igreja de São Tomás, Leipzig) — direção do autor

Duração: cerca de 3 horas
Efetivo: vozes solistas (2 sopranos, 1 contralto, 1 tenor, 2 baixos);
Efetivo: 2 coros completos (sopranos, contraltos, tenores e baixos); 
Efetivo: 2 orquestras, tendo, cada uma: 2 flautas, 2 oboés, 1 oboé d'amore, 1 oboé da caccia, as cordas (primeiros-violinos, segundos-violinos, violas, violoncelos e contra-baixos), e baixo-contínuo (órgão e/ou cravo, viola da gamba)

Não se sabe a data exata da composição da Paixão segundo Mateus, mas tudo leva a crer que Bach a escreveu no início de 1727 para as celebrações da Sexta-feira santa daquele ano, que caiu num dia 11 de abril, na Igreja de São Tomás, a Thomaskirche, em Leipzig, cidade na qual ele desempenhava a função de Kantor (algo como um secretário municipal da música). Ele voltaria à partitura em 1736 promovendo pequenas revisões, acrescendo o órgão ao baixo-contínuo, para nova apresentação. Depois disso, silêncio. Por um século, essa obra genial estaria encoberta pelo silêncio.

A obra usa os capítulos 26 e 27 do Evangelho de Mateus, entremeados a corais e árias com libreto organizado pelo poeta Christian Friedrich Henrici, mais conhecido como Picander. Por isso, depois do Coral de abertura, o tenor que conduz a ação como o Evangelista já começa seu recitativo dizendo "Da Jesus diese Rede vollendet hatte..." (Quando Jesus terminou estas palavras...), porque a Paixão de Bach pega, literalmente, o bonde andando: é provável que a Paixão fosse apresentada à congregação de fiéis na sequência das leituras da bíblia luterana, daí um início tão abrupto, Jesus terminando de dizer palavras que no texto cantado não apareceram.

Cada recitativo do Evangelista Mateus é acompanhado do baixo-contínuo, como a tradição exige. Poderá ser somente o cravo, ou o órgão. Mas cada vez que Jesus fala — e temos esse contraste logo no segundo recitativo da obra — a sua voz é acompanhada de um "halo musical" das cordas, ou seja, sua voz é protegida por essa moldura especial. Num dos momentos cruciais da Paixão, e essa será sua última fala/recitativo, esse "halo" desaparece e a voz de Jesus é acompanhada "a seco", com o baixo-contínuo comum: é no momento em que ele pergunta, na única frase que não é dita em alemão: "Eli, Eli, lama asabthani?"; que logo o Evangelista nos traduz (para o alemão, claro): "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?".

Esses recitativos de Mateus vão costurando a narrativa, contando a história, e a cada momento se soma uma ária ou coral. Há muito de linguagem cifrada na partitura, coisas que só os músicos vêem. Por exemplo, quando a palavra cálice é cantada, Bach sempre dispõe as notas da melodia de maneira que se desenhe na pauta um cálice inclinado. E há também mimetismos sutis: quando a soprano canta em "Blute nur, du liebes Herz!" (Sangra, querido coração) a ação da serpente (Schlange) na ária que fala da traição de Judas, a música da frase "sepenteia" a palavra. Ou em "Buß und Reu" (Contrição e arrependimento) o tocar staccato das flautas sugerem os pingos das lágrimas que o texto explicita.

Bach se permite, até, a um recurso inimaginável no século XVIII: quando Pilatus oferece à multidão a escolha entre Jesus e Barrabás para a obtenção do perdão, o grito aterrador da multidão escolhendo Barrabás, numa dissonância agressiva, é de efeito chocante.

Muitos dos Corais presentes na obra são da tradição local, alguns remontando ao século XVI. É que, no serviço religioso luterano, temos Coros e Corais (Chor und Chorale), o primeiro é cantado pelo coro oficial, aquele que está lá em cima, regido pelo mestre-de-coro, e o segundo é cantado por toda a congregação: estes são mais espaçosos, sílabas mais escandidas, e geralmente já conhecidos do "público".

A arquitetura da Igreja de São Tomas foi determinante na maneira como Bach pensou a obra. Ele já havia escrito e tocado lá a Paixão segundo João, em 1724. Depois apresentou outra Paixão, segundo Marcos, que não era música sua, mas que certamente enriqueceu a experiência de experimentar a música no espaço acústico da nave daquela igreja. Sem os adornos histéricos das igrejas católicas, as naves pouco adornadas das igrejas protestantes eram perfeitas para a reverberação do som. Quando Bach planejou a Paixão segundo Mateus, a Igreja de São Tomás contava com duas galerias e um órgão e um balcão de coro em cada uma. (Isso mudou um pouco com uma reforma feita em 1732). Então ele colocou duas orquestras completas e dois coros completos em cada um dos espaços. Assim, o sujeito que esteve sentado lá numa das 3 apresentações que Bach regeu ali em vida, tinha música vindo de cima, dos dois lados do prédio! A função da formação dupla era também dramática: uma das orquestras emprestava suas cordas ao halo dos recitativos de Jesus; os coros se intercomunicam, ora um deles representando os discípulos, outro a turba enfurecida, ora um coro acusatório, outro chorando as agruras do principal personagem.

Consideradas as proporções desses balcões e as dimensões das orquestras da época, podemos imaginar uns 50 integrantes no total, 20 a 25 de cada lado, entre solistas vocais, coristas e instrumentistas. Exageros da era moderna, como 400 vozes do Coro do Tabernáculo Mórmon de Salt Lake City, iluminados com holofotes roxos e azuis-turquesa, são cafonices de norte-americano.

Como já fiz referência no primeiro parágrafo deste texto, após a re-apresentação de 1736, a obra foi recoberta pelo silêncio. Apenas alguns fiéis presentes na cidade de Leipzig, por três vezes, puderam ouvir essa obra magnífica. Depois, silêncio. Por um século. Foi preciso passar exatos 93 anos da última apresentação. Exatos 79 anos da morte de Bach. Até que uma senhora berlinense, Bella Solomon (que, posteriormente adotaria o sobrenome Bartholdy), deu ao neto de 15 anos, uma cópia manuscrita da partitura da Paixão de Bach. Esse presente mudou a vida do jovem músico. Poucos anos mais tarde, em 1829, na mesma Berlim, esse jovem organizaria um concerto e apresentaria a monumental Paixão segundo Mateus, e com isso provocaria um crescente interesse do público pela obra de um compositor que estava confinado ao estudo dos aspirantes a compositores. O nome desse jovem? Felix Mendelssohn. Assim como os avós, seus pais adotaram o sobrenome Bartholdy (de uma propriedade da família) para amenizar as evidentes raízes judaicas após a conversão deles ao protestantismo. Mas Mendelssohn nunca deixou de se orgulhar de ter feito renascer no repertório esta obra definitiva. E brincava: — "E pensar que coube a um judeu restaurar a maior obra musical da cristandade!". A Paixão é isso, e mais que isso: é a maior obra musical da humanidade.

© RAFAEL FONSECA

O vídeo abaixo traz legendas em português para a compreensão da narrativa:

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