(1896) MAHLER Sinfonia n. 3

Compositor: Gustav Mahler
Número de catálogo: MW 3
Data da composição: 1893 a 6 de agosto de 1896
Estréia: 9 de junho de 1902 — Em Krefeld (próximo a Düsseldorf), regência de Mahler

Duração: cerca de 1 hora e 30 minutos

 
Efetivo: 4 flautas, 4 oboés, 3 clarinetas, 2 clarinetas-baixo, 4 fagotes, 8 trompas, 4 trompetes, 4 trombones, 1 tuba, tímpano, bumbo, caixa-clara, pratos, tamborim, gongo, triângulo, baquetas, 2 glockenspiels; e fora do palco: trompa-de-postilhão, várias caixas-claras
Efetivo vocal: 1 contralto solista, coro feminino, coro infantil
  

A Terceira de Mahler permanece sendo a mais longa Sinfonia já escrita, podendo durar 1 hora e 40 minutos. São 6 movimentos distribuídos em Parte I e Parte II (cuja parte I é, integralmente, o primeiro movimento, um gigantesco arco em Forma-Sonata de mais de meia hora). Foram muitas as influências a imprimir sua marca nesta obra, de maneira mais subjetiva, a infância do próprio compositor, que certa vez declarou que "Meus pais eram como fogo e água, ele um teimoso e ela pura doçura. Sem esse encontro de extremos, nem eu nem minha Terceira Sinfonia existiríamos. Experimento uma estranha sensação quando penso nisso". Talvez por isso a obra em seu início apresente contrastes tão impactantes: até mesmo ecos de marchas militares — as bandas do exército imperial que Mahler, ainda garoto, corria à praça de Jihlava para assistir — surgem como lembranças fantasmagóricas.

Mas o próprio Mahler criou um programa, depois abandonado. Cada um dos movimentos cumpririam um roteiro que investiga as relações do homem com a Natureza, incluindo aí um trecho do "Zaratustra" de Nietzche musicado na canção que faz as vezes de quarto movimento, com o sub-título de "O que o Homem me diz". Um movimento que acabou abandonado, canção que daria a este o sub-título de "O que as Crianças me dizem", acabou reservado para cumprir o papel da Sinfonia seguinte, a Quarta.

I. Kräftig: Entschieden — Immer dasselbe Tempo: Marsch —Wie zu Anfang
(Forte: Decidido — Sempre no mesmo Tempo: Marcha — Como no começo)
A este movimento, no programa depois abandonado, Mahler quis chamar "O Despertar de Pan e a chegada do Verão". Traduz-se aqui a Natureza do ponto-de-vista de quem a observa — ou seja, Mahler mesmo — com encantamento e crença positiva. Aliás, será esta a única Sinfonia do autor sem o peso da sombra da morte, tão presenta nas demais. Bruno Walter, aluno do mestre, esteve em Salzkammergut (a região dos lagos ao redor de Salzburg), onde ele compôs boa parte da partitura, e lá escutou dele: — "Não adianta olhar a paisagem, ela passou inteirinha para a minha Terceira Sinfonia!". Mas não desejemos ouvir aqui pássaros cantarolando como na "Pastoral" de Beethoven, pois esse tipo de associação não acontece: a música aqui é símbolo dessa Natureza filtrada pelas lentes da percepção de um homem que preza a civilização, e que vê, segundo suas próprias palavras, a vida "começando pela Natureza inanimada e elevando-se até o Amor de Deus", um ideal de ascensão, do primitivismo ao sublime. Teríamos então nesse primeiro movimento a descrição da matéria bruta do mundo, surgindo com toda a sua violência. Encerra-se nele a Primeira parte, e devido à grande extensão da Sinfonia, é comum que os maestros promovam aqui um intervalo.

II. Tempo di Menuetto: Sehr mässig
(Tempo de Minueto: Bem moderadamente)
Segundo o antigo programa da Sinfonia, este movimento traduz "O que me dizem as Flores do Campo". Um movimento sinfônico de grande lirismo. Estamos, com ele, habitando o mundo com plantas e flores.

III. Comodo: Scherzando — Sehr gemächlich — Schnell und schmetternd 
(Confortavelmente: Brincando — Muito lentamente — Rápido e devastador)
Faz as vezes do Scherzo da Sinfonia, e teria o sub-título de "O que os Animais da Floresta me dizem". Num primeiro trecho, Mahler explora uma atmosfera irônica e idealizada do comportamento dos bichos, num jogo jocoso e alegre; logo estabelece-se um solo de trompa de rara beleza — como um anúncio, algo que antecipa a entrada da consciência, do homem, o que virá no próximo movimento — e o movimento conclui com uma fanfarra assustadoramente aflita.

IV. Sehr langsam, Misterioso, Durchaus ppp: "O Mensch! Gib acht!"
(Muito lentamente, misterioso, absolutamente pianíssimo-íssimo: [Canção] "Ó Homem! Cuidado!")
A primeira canção da Sinfonia tem texto extraído do final "Zaratustra" de Nietzche. No plano original, era "O que me dizem os Homens". Na voz da contralto solista, a "Canção da Meia-noite" ou "Canção do Embriagado". Inserido o homem no contexto, as questões existenciais afloram:

O Mensch! Gib acht!      Ó Homens! Cuidado!
Was spricht, die tiefe Mitternacht?      Que diz a profunda meia noite?
Ich schlief, ich schlief,      Eu adormeci, eu adormeci,
Aus tiefem Traum bin ich erwacht.      Acordei de um sonho profundo!
Die Welt ist tief,      Profundo é o mundo,
Und tiefer als der Tag gedacht.       Mais profundo do que o dia deixaria supor.
Tief ist ihr Weh,      Profunda é a sua dor,
Lust - tiefer noch als Herzeleid.      O êxtase é ainda mais profundo que a tristeza.
Weh spricht: Vergeh!      A dor grita: Segue!
Doch alle Lust will Ewigkeit,      Mas todo o prazer quer a Eternidade,
Will tiefe, tiefe Ewigkeit!      Uma profunda, profunda Eternidade!

V. Lustig im Tempo und keck im Ausdruck: "Bimm bamm!"
(Alegre no ritmo e atrevido na expressividade: "Bimm bamm!")
Aqui o recado sugerido é "O que os Anjos me dizem". Mahler toma uma das Canções de seu Ciclo anterior "A Trompa maravilhosa do Menino" inspiração num hino tradicional do século XVII que versa a inocência da mendicância das crianças pobres. O canto fica a cargo de um coro de meninos e um coral feminino em contraponto à contralto:

 Bimm, bamm, bimm, bamm [...]      Bim, Bam, Bim, Bam [...]

 Es sungen drei Engel einen süßen Gesang,      Três anjos cantam uma doce canção,
 Mit Freuden es selig in den Himmel klang.       Alegremente ela ressoa suave no céu,
 Sie jauchzten fröhlich auch dabei,      Ouviram-se tantos gritos de júbilo,
 Daß Petrus sei von Sünden frei.      Que até Pedro ficou livre dos seus pecados.
 Und als der Herr Jesus zu Tische saß,      E quando o Senhor Jesus se sentou à mesa,
 Mit seinen zwölf Jügern  das Abendmahl aß,      Com os seus doze discípulos, comeu a ceia.
 Da sprach der Herr Jesus:       Disse então o Senhor Jesus: 
"Was stehst du den hier?       "Que fazes tu aqui?
 Wenn ich dich anseh', so weinest du mir."      Quando olho para ti, começas a chorar."
"Und sollt' ich nicht weinen, du gütiger Gott"      "Então não tenho que chorar de misericórdia?"

 "Ich habe übertreten die Zehn Gebot;      "Transgredi os dez mandamentos,
 Ich gehe und weine ja bitterlich,      Continuo a chorar amargamente
 Ach komm und erbarme duch über mich."      Ah! Tende piedade de mim!"

 Has du denn übertreten die Zehen Gebot,      Se transgrediste os dez mandamentos,
 So fall auf die Knie und bete zu Gott!      Ajoelha-te e reza a Deus
 Liebe nut Gott in alle Zeit,      Ama só a Deus para sempre!
 So wirst du erlangen die himmlische Freud!      Assim conhecerás as alegrias celestes.

 Die himmlische Freud, die Selige Stadt;      A alegria celeste, a cidade feliz,
 Die himmlische Freud, die kein Ende mehr hat.      A alegria celeste, que não tem fim.
 Die himmlische Freude war Petro bereit'      A alegria celeste foi entregue por Jesus a Pedro,
 Durch Jesum und allen zur Seligkeit.        E a todos para a nossa salvação.

VI. Langsam: Ruhevoll — Empfundem — Sehr gesangvoll — Sehr langsam
(Lentamente: Tranqüilo — Profundo — Muito cantarolável — Muito lentamente)
O finale é uma página puramente instrumental, de longa duração (podendo chegar a meia hora), e constava no plano primeiro de Mahler com o sub-título de "O que me diz o Amor", um Adagio de forte apelo emocional, com caráter luminoso e fervoroso, que conclui a Sinfonia de maneira apaixonada; e somente a música, sem palavras, poderia expressar a grandiosidade do sentimento que aproxima o homem da perfeição e o retira da condição tétrica na qual ele se vê aprisionado na matéria mutável. Por outras palavras, Mahler quer lembrar ao ouvinte da batida — porém nem sempre compreendida — frase: "Deus é Amor".

© RAFAEL FONSECA
         
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