(1894) MAHLER Sinfonia n. 2 "Ressurreição"

Auferstehungssinfonie (Sinfonia da Ressurreição)
 
Compositor: Gustav Mahler

Número de catálogo: MW 2
Data da composição: 1888 a 1894
Estréia: 13 de dezembro de 1895 — Mahler regendo a Filarmônica de Berlim
   
Sempre fanático pelo tema da morte, Mahler havia terminado a composição de sua Primeira Sinfonia (1888) e logo escreveu o que deveria ser um Poema Sinfônico chamado Totenfeier (Rito Funeral). Logo segue-lhe a ideia de continuar a composição e escrever uma grande Sinfonia nos moldes da Nona de Beethoven (com a intervenção do Coral no fim). Cinco anos depois — Mahler tinha de dividir seu tempo com as atividades de regente e só lhe sobravam as férias de verão para compor — estão prontos os segundo e terceiro movimentos (1893). No ano seguinte (1894), durante os funerais de Hans von Bülow, o grande regente do século XIX, veio-lhe a inspiração para a conclusão da obra com o poema "Die Auferstehung" (A Ressurreição) de Friedrich Klopstock (1724-1803), não temendo a comparação da obra com a Nona de Beethoven — entre a Nona, primeira a usar voz, e esta, só há outra Sinfonia que tenha ousado o coral, a Segunda de Mendelssohn, obra que nunca chegou a alcançar notoriedade — e usando duas solistas, soprano e contralto, e coro no final.
 
I. Allegro maestoso: Mit durchaus ernstem und feierlichem Ausdruck
(Rápido e majestosamente: Com expressão muito grave e solene)
O impacto dos primeiros acordes já é devastador. Como que da imobilidade provocada pelo impacto da morte, a música do Primeiro movimento nos coloca em contato com a maior dúvida existencial do gênero humano: transformada em uma música poderosa, inquietante, urgente. O poderoso ex-Poema Sinfônico é uma enorme Marcha fúnebre em largas proporções, cuja impressão é de relutância, a própria relutância da aceitação ou não das perdas da vida, do adeus ao ser amado, da luta e do sofrimento.
   
II. Andante moderato: Sehr gemächlich, Nicht eilen
(A passo de caminhada, moderadamente: Muito vagaroso, sem pressa)
O segundo movimento, que por vezes toma ares de trilha-sonora da Belle Époque que se esfacelava aos poucos — numa valsa indecisa —, traz as lembranças, a reflexão pós-morte, a melancolia de quem fica. Há passagens de extrema beleza e delas somos conduzidos a outras que de longe sugerem angústia e vulgaridade. Vale a máxima do próprio compositor de que "uma Sinfonia tem que ser como o Mundo e conter tudo". 
 
III. Scherzo: In ruhig fließender Bewegung
(Scherzo: Movimentado mas fluindo tranqüilamente)
O terceiro movimento traz à tona a negação, típica dos momentos de perda, pela qual todos nós passamos. Recusamo-nos a acreditar, o mundo agora parece sem sentido, e Mahler é implacavelmente irônico com isso. Há uma informação de bastidores extremamente importante para se compreender esta passagem: Mahler usa a mesma melodia de uma Canção anterior cujo texto trata da prédica de Santo Antonio de Pádua aos peixes; ou seja, sarcasticamente ele nos coloca em contato com a realidade que está sugerida no texto (que não aparece): os peixes ficaram encantados com a retórica de Santo antonio, mas nada puderam compreender do que foi dito. A meu ver a mensagem deste movimento é clara! Há um sentido no caminho da vida, mas pouco podemos entender ou aproveitar do que é oferecido, uma vez que estamos encantados com o aspecto superficial das coisas. Não por acaso, ingenuidade e frivolidade transbordam...
 
— attacca:
IV. Urlicht: Sehr feierlich, aber Schlicht
( — direto, sem interrupção:
Luz original: Muito solene, porém simples)
O quarto movimento é na verdade uma Canção pré-existente que ele havia escrito para a voz da contralto solista: Urlicht (Luz Primordial, ou Luz Original). Esse é o epicentro da obra. É a tradução dos sentimentos mais simples, a ingenuidade, a crença e a fé.

Contralto:
O Röschen rot!         Ó pequena rosa vermelha!
Der Mensch liegt in größter Not!         O homem jaz na maior miséria!
Der Mensch liegt in größter Pein!         O homem jaz no maior sofrimento!
Je lieber möcht' ich im Himmel sein.         Como eu gostaria de estar no céu!
Da kam ich auf einen breiten Weg:         Eu vim por um largo caminho:
Da kam ein Engelein und wollt’ mich abweisen.         Chegou um anjo que me quis afastar.
Ach nein! Ich ließ mich nicht abweisen!          Ah, não! Não deixei que me afastasse!
Ich bin von Gott und will wieder zu Gott!         Eu venho de Deus e hei-de regressar a Deus!
Der liebe Gott wird mir ein Lichtchen geben,         O bom Deus dar-me-á uma pequena luz.
Wird leuchten mir bis in das ewig selig Leben!         Iluminar-me-á até à vida eterna!

V. Im Tempo des Scherzo: Wild herausfahrend "Aufersteh'n"
(No mesmo tempo do Scherzo: Condução selvagem até o coro "Ressurreição")
O quinto e último movimento representa a segunda metade da obra, com duração quase igual aos 4 movimentos anteriores. Volta a reflexão a respeito da morte, num aterrador retorno ao clima inicial. Mahler faz uso de instrumentação distante (geralmente colocada atrás do palco, onde não se pode ver) para representar o aviso dos céus, enquanto a orquestra reproduz o desespero da condição humana. Como na Nona de Beethoven, alguns temas dos movimentos anteriores são relembrados. Após um bom tempo de música puramente instrumental (outra coincidência com o finale da Nona de Beethoven), entra em cena o Coro, com o poema de Klopstok, mas sobre o qual Mahler acrescentou trechos da própria pena.

Coro e Soprano:
 Aufersteh'n, ja aufersteh'n wirst du,         Ressuscitarás, sim ides ressuscitar,
 Mein Staub, nach kurzer Ruh!         Cinzas minhas, depois de um curto repouso!
 Unsterblich Leben         A vida imortal  
 Wird, der dich rief, dir geben.          ser-te-á dada por Aquele que vos chamou!
 Wieder aufzublüh'n, wirst du gesät!         Estais semeadas, para florir de novo!        
 Der Herr der Ernte geht         O Senhor da colheita
 Und sammelt Garben         vai recolher os feixes de nós,
 Uns ein, die starbe!         que morremos!

Contralto:
 O glaube, mein Herz, o glaube:         Crê pois, meu coração, crê!
 Es geht dir nichts verloren!         Nada irás perder!
 Dein ist, ja dein, was du gesehnt,         É teu, sim é teu o que sentiste.
 Dein, was du geliebt, was du gestritten!         É teu o que desejaste, aquilo por que lutaste!

Soprano:
 O glaube: Du wardst nicht umsonst geboren!         Crê: não nasceste em vão,
 Hast nicht omsonst gelebt, gelitten!         Não viveste e não sofreste em vão!

Coro e Contralto:
 Was entstanden ist, das muß vergehen!         O que aconteceu tem de passar
 Was vergangen, auferstehen!          O que passou, tem de ressuscitar!
 Hör auf zu beben!         Deixa de tremer!
 Bereite dich zu leben!         Prepara-te para viver!

Sopran e Contralto:
 O Schmerz! Du Alldurchdringer!         Ó sofrimento! Tu, que penetras em tudo,
 Dir bin ich entrungen.         Já te escapei!
 O Tod! Du Allbezwinger!         Ó morte, tu que tudo conquistas,
 Nun bist du bezwungen!         Agora estás derrotada!
 Mit Flügeln, die ich mir errungen,         Com as asas que ganhei,
 In heißem Liebessreben         Na ardorosa luta do amor,
 Werd ich entschweben         Levantarei voo
 Zum Licht, zu dem kein Aug gedrungen!         Em direção à luz que nenhum olho penetrou.

Coro:
 Mit Flügeln, die ich mir errungen,        Com as asas que ganhei
 Werd ich entschweben!         Levantarei voo
 Sterben wird ich, um zu leben!         Morrerei para viver de novo!
 Aufersteh'n, ja aufersteh'n wirst du,         Ressuscitarás, sim ressuscitarás,
 Mein Herz, in einem Nu!         Meu coração, num instante!
 Was du geschlagen,         O teu caminho
 Zu Gott wird es dich tragen!         Levar-te-á para Deus!   
       
A questão religiosa permeia a consciência do compositor, nascido judeu mas sedento da idéia de perdão proposta pelo catolicismo. Ato continuo, ele iria converter-se, para assumir a direção da Ópera Imperial de Viena, cargo restrito a católicos. Não foi um ato meramente oportunista; Mahler tinha real convicção de suas dúvidas.

© RAFAEL FONSECA